quarta-feira, 29 de março de 2017

Entrevista de Samuel Pinheiro Guimarães - para a Carta Capital




               Samuel Pinheiro Guimarães
                                   

1. Como o Senhor definiria a passagem de José Serra pelo Itamaraty e avaliaria seu pedido de demissão?
SPG: A passagem de José Serra poderia ser definida como desastrosa.
Revelou um notável despreparo para o exercício da missão de Chanceler. Seus pronunciamentos, seu desconhecimento de temas triviais, suas tentativas de rever princípios da política externa, tais como a não intervenção nos assuntos internos de outros Estados, em especial na América do Sul; a prioridade da política brasileira para América do Sul e a necessidade de diversificar as relações do Brasil com todos os Estados; a necessidade de articular a ação brasileira com a de países de circunstâncias semelhantes, demonstraram seu despreparo.
Finalmente, a tentativa de alinhar o Brasil com a política externa americana em todos os temas, sem colocar acima de tudo os interesses brasileiros, aliás de acordo com a política geral praticada pelo Governo Temer, revelou seu descompasso com o Brasil.
Pelo seu comportamento, revelou desprezo pelos quadros do Itamaraty e pela sua experiência, isolando-se, quando em Brasília, em seu Gabinete, dedicando especial atenção às questões de imprensa, e passando grande parte de seu tempo em São Paulo.
Seu pedido de demissão pode estar ligado a quatro fatores: a decepção com sua pequena influência no Governo, em especial nas questões econômicas; sua relativa incompatibilização com os Estados Unidos, apesar de suas posições tradicionais de grande proximidade com esse país, devido a sua inoportuna e depreciativa declaração sobre Donald Trump durante a campanha eleitoral americana; a necessidade de organizar sua candidatura a presidente ou mesmo a Governador nas eleições de 2018; a precariedade de sua saúde, inclusive física.

2. De que forma o Brasil conseguirá recuperar o protagonismo internacional perdido recentemente?
SPG: Em primeiro lugar, pela execução de uma política externa que se fundamente no respeito aos princípios que garantem a ordem internacional, que protegem os Estados mais fracos e que estão consagrados na Constituição Federal e na Carta das Nações Unidas, quais sejam os princípios da não intervenção; da autodeterminação; da igualdade soberana e da reciprocidade.
Em segundo lugar, por uma política externa que priorize o desenvolvimento do Brasil, em todas as suas dimensões, e a ampliação da participação do Brasil nos organismos internacionais, inclusive no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Em terceiro lugar, pela denúncia firme e serena de toda e qualquer ação arbitrária e violenta, em especial de Grandes Potências, contra os Estados periféricos e frágeis.
Em quarto lugar, pelo reconhecimento de que a realidade da localização geográfica do Brasil, suas fronteiras e número de vizinhos, a dimensão do território e de sua população, a riqueza de recursos naturais, o elevado grau de urbanização e de industrialização impõem uma estratégia de política externa de afirmação nacional.
A ação serena e prudente dos executores da política externa, seu conhecimento dos temas e sua determinação na defesa dos interesses do Brasil diante de qualquer Estado são fatores indispensáveis para recuperar o respeito e o protagonismo internacional.
Só é respeitado quem se respeita e quem defende seus interesses. 

3. O Senhor acredita que os EUA, na presidência de Donald Trump, irá formalmente apoiar a ideia de um Estado único Israel-Palestina como querem os israelenses?
SPG: Acredito que muitas das manifestações iniciais sobre política externa emitidas pelo Presidente Trump, tais como as que se referiam à OTAN, ao México, à Austrália, à Europa, à China, à Rússia e, inclusive, a Israel, virão a ser modificadas.
A questão de Israel é vital para os povos árabes e muçulmanos e os interesses americanos nestes países, em especial devido ao petróleo, são tão grandes e estratégicos que as pressões internas nos EUA serão muito intensas para que o Governo Trump volte à sua posição tradicional:
·     financiar Israel em montante superior a 3 bilhões de dólares por ano, o que sustenta a economia e o poder militar israelense;
·     apoiar militarmente e em atividades de inteligência o Governo de  Israel;
·     aceitar a expansão, desde que discreta, de assentamentos israelenses na Cisjordânia e condená-los retoricamente;
·     apoiar a solução de dois Estados;
·     apoiar a resolução do Conselho de Segurança da ONU sobre a retirada israelense dos territórios ocupados em 1968 mas nada fazer, na prática, para implementá-la.

4.     Como explicar essa onda reacionária no planeta?
SPG: A onda reacionária começa em 1979 com a ascensão de Ronald Reagan, Margaret Thatcher e Helmut Kohl que promoveram, de um lado, o combate às políticas e aos programas keynesianos e a desregulamentação do setor financeiro e das megaempresas (fim das leis anti-trust) e adotaram políticas neoliberais e que, de outro lado, enfrentaram agressivamente o que Reagan chamou de Império do Mal e todos os regimes de economia mista e de políticas externas menos submissas.
A desintegração da União Soviética em 1991, a gradual adesão, a partir de 1979, da China ao capitalismo e a esmagadora vitória americana na Guerra do Golfo permitiram ao primeiro Bush proclamar uma Nova Ordem Mundial, com a hegemonia americana, a única Grande Potência mundial, em um mundo unipolar.
A partir desta vitória do capitalismo neoliberal sobre o socialismo estatal, os governos da periferia e do centro aderiram ao capitalismo selvagem e às políticas neoliberais, sintetizadas no Consenso de Washington, com a redução dos direitos dos trabalhadores e dos direitos civis, estes em especial a partir de 2001 com a legislação americana e internacional de combate ao terrorismo, o novo inimigo, o aumento dos gastos militares e de restrição aos direitos civis.
A recessão, que se inicia em 2007, que se prolongou e se transformou em   estagnação, trouxe um novo elemento e impulso à onda reacionária, qual seja o colapso da economia globalizada, devido à falência do sistema financeiro, a necessidade de sua recuperação com enormes recursos do Estado, e a culpa jogada nos gastos sociais e, portanto, nos trabalhadores.
 As políticas recessivas, implementadas para recuperar a “confiança” dos investidores (isto é, do capital), que levaram ao desemprego e às reduções de salários, de direitos trabalhistas e previdenciários, estimularam a xenofobia e os movimentos de direita, enquanto as agressões militares a países como a Líbia e a Síria, onde já morreram mais de 400 mil pessoas, geraram as ondas de refugiados, deslocados e imigrantes, e as políticas anti-imigrantes nos países centrais.

5.     Por que tem sido tão fácil derrubar as políticas progressistas na América do Sul, principalmente na Argentina e no Brasil?
SPG: Há quatro fatores principais que levaram à possibilidade de derrubar as políticas progressistas a partir da derrubada dos Governos que as promoveram:
·     As operações de regime change, isto é, de golpe de Estado “suaves” desencadeadas pelos Estados Unidos após as vitórias democráticas de Chávez; Lula; Kirchner; Tabaré, Evo, Lugo e Correa, devido aos programas progressistas e de afirmação nacional que passaram a executar e que afetariam, em maior ou menor medida, os interesses políticos e econômicos americanos;
·     Em segundo lugar, a forte e articulada reação das classes hegemônicas, beneficiárias de séculos de mecanismos de concentração de riqueza, renda e poder, contra os programas progressistas, a favor dos trabalhadores e dos miseráveis, implementados por esses Governos, inclusive através da articulação sistemática e permanente da mídia e dos poderes Legislativo e Judiciário contra esses Governos;
·     Em terceiro lugar, a não mobilização, em maior ou menor escala, das massas beneficiárias daqueles programas pelos Governos progressistas em defesa de seus programas e de esclarecimento sobre os mecanismos de dominação das classes hegemônicas;
·     Em quarto lugar, no caso de alguns países, a incapacidade política e de visão estratégica dos Governantes.

    
6.     O senhor acredita que o processo de globalização está sob risco, por conta da ascensão do populismo de direita?
SPG: O processo de globalização, isto é, de criação de uma economia global, foi impulsionado pelas megaempresas multinacionais (e por seus Governos de origem) com o objetivo de eliminar os obstáculos à sua ação em todos os mercados em busca de maiores lucros, sob a orientação e a propaganda ideológica do neoliberalismo.
A globalização levou a uma maior concentração de riqueza e renda dentro dos países, desenvolvidos e subdesenvolvidos, e entre os países.     
O processo de globalização levou à crise financeira, econômica e social de 2007 e à consagração, ideológica inclusive, sob “o novo conceito” de cadeias globais de valor, da divisão internacional do trabalho entre, de um lado, as economias altamente desenvolvidas e tecnológicas e, de outro lado, as economias periféricas, produtoras e exportadoras de matérias primas e de manufaturados simples.
Este processo de globalização certamente não beneficiou o Brasil pois acentuou sua característica de economia primária-exportadora e concentrou a renda no campo e no setor financeiro.
O populismo de direita é uma consequência do processo de globalização inclusive na medida em que muitos partidos e Governos de esquerda aderiram às visões e às políticas neoliberais e permitiram que, em nome de uma pseudo-utopia capitalista globalizante, os trabalhadores de seus países ficassem desempregados e fossem vítimas de políticas sociais anti-trabalho.

7.     De qualquer forma, os grandes tratados internacionais devem passar por uma fase de congelamento, não?
SPG: Acredito que sim. O Relatório anual sobre política comercial enviado pelo Presidente Donald Trump ao Congresso americano indica esta orientação de política comercial de dar preferência a acordos bilaterais para reduzir seus déficits, ao unilateralismo,  à ressurreição das práticas de retaliação previstas pela Seção 301 da Lei de Comércio americana contra politicas julgadas “injustas” e de desprezo pela Organização Mundial do Comércio-OMC e seu sistema de solução de controvérsias.
Diz o Relatório (e, portanto, o Presidente Trump):
“Desde que os Estados Unidos ganharam sua independência, tem sido um claro princípio de nosso país que os cidadãos americanos estão sujeitos apenas às leis e aos regulamentos feitos pelo Governo dos Estados Unidos --- não a decisões adotadas por Governos estrangeiros ou organizações internacionais”.
Para o Brasil, é sempre preferível o sistema multilateral de negociação e de solução de controvérsias da OMC, onde temos maior capacidade de articular, com outros países, a defesa de nossos interesses econômicos
Por outro lado, aqueles grandes acordos internacionais, que vinham sendo tão louvados pela imprensa e pela academia, de um lado não atenderiam aos nossos interesses e, de outro, nem deles poderíamos participar por não sermos, no caso do TransPacific Partnership-TPP, um país do Pacífico, e no caso do TransAtlantic Trade and Investment Partnership-TTIP, por não sermos um país europeu.

8.     O Senhor enxerga interesses geopolíticos por trás da Operação Lava Jato?
SPG: O fato de haver interesses geopolíticos atrás da Operação Lava-Jato é importante, porém mais relevante é procurar identificar as consequências geopolíticas para o Brasil e para seu projeto nacional.
O projeto nacional brasileiro tem as seguintes características:
§  Construir uma economia moderna industrial capitalista;
§  Construir um sistema de defesa, de natureza dissuasória, através do programa do submarino nuclear e da expansão da indústria aeronáutica e espacial;
§  Construir gradualmente, através da ação do Estado, um sistema econômico e social  menos desigual em termos regionais, de renda, de etnia, de gênero etc.;
§  Desenvolver uma política externa soberana com os seguintes instrumentos e objetivos:
·      articular um bloco político sul americano, a UNASUL;
·      articular um bloco latino-americano, a CELAC;
·      fortalecer um bloco regional na América meridional,  o Mercosul;
·     desenvolver relações políticas e econômicas com todos os países, sem prejulgar seus regimes políticos,  econômicos e sociais;
·     reformar os organismos internacionais, em especial o Conselho de Segurança da ONU e os organismos financeiros como o FMI,  para conquistar para o Brasil a possibilidade de maior participação e defesa de seus interesses;
·     articular alianças com os grandes Estados da periferia, como o IBAS (Índia, Brasil e África do Sul) e o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).  
Estes objetivos confrontam profundamente os interesses dos Estados Unidos e das potências a eles aliadas, ou mesmo não aliadas como é o caso da China e da Rússia.
A nenhuma Grande Potência, isto é aos membros permanentes do CSNU, às potências nucleares e missilísticas e às grandes potências econômicas como o Japão e a Alemanha, interessa o surgimento de uma nova potência, isto é de um Estado de fato autônomo e soberano pois isto prejudica seus interesses de obter acesso a todos os mercados produtivos e financeiros e às vias de acesso a mercados na disputa permanente por uma parcela maior da riqueza e do poder político e militar mundial.
A ação geopolítica externa se desenvolveu da seguinte forma:
·      como se tornou público e reconhecido pelo Governo americano, a NSA (National Security Agency) há décadas monitora e grava todas as comunicações eletrônicas entre todas as pessoas no mundo, em especial as  lideranças, como foram monitorados e gravados os aparelhos celulares de Angela Merkel e Dilma Rousseff,  e as  principais autoridades de todos os Governos e tais informações podem ser repassadas a suas megaempresas e servem para sua política externa;
·     o Juiz Sergio Moro, como muitos dos procuradores da Operação Lava Jato, foi treinado em programas especiais, patrocinados pelo Governo americano, e mantem permanente contato com as autoridades americanas;
·     o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) é um poderoso instrumento contra as empresas estrangeiras que competem com as megaempresas americanas no mercado mundial, isto é no mercado de cada país;
·     o Governo americano, através do Departamento de Justiça e do FBI,  através de acordos, fornece informações à Polícia Federal e aos Procuradores do Ministério Público para auxiliar suas investigações.
Neste contexto, a Operação Lava Jato tem importantes consequências geopolíticas, e colabora para os objetivos das Grandes Potências, em especial dos Estados Unidos, pelas seguintes razões:
·     abala a autoestima da sociedade brasileira, convencida pela mídia  de sua corrupção intrínseca e excepcional;
·     contribui para afetar o prestígio político dos partidos de esquerda e progressistas em geral;  
·     afeta o prestígio e a capacidade de articulação do Brasil na América Latina e, em especial, na América do Sul; 
·     contribui para desarticular a aliança política entre os Estados da América do Sul (UNASUL) e da América Latina (CELAC);
·     corrói o prestigio político e econômico brasileiro na África ocidental;
·     corroi a posição do Brasil nos BRICS e nas Nações Unidas  
·     desarticula e destroça as grandes empresas brasileiras do setor de construção e de engenharia pesada que eram altamente competitivas;
·     abre o mercado brasileiro, onde deixa de haver concorrência de empresas locais, para as megaempresas internacionais de construção de grandes obras de infraestrutura, mercado que é  estimado em  mais de um trilhão de reais.
·     contribui para desacreditar o BNDES como agência de financiamento da política comercial brasileira;
·     ao desmoralizar o Estado, contribui para o projeto de redução ao mínimo do Estado brasileiro, principal instrumento capaz de vencer os desafios do desenvolvimento, da soberania e das desigualdades.

9.     Há alguma semelhança entre este momento histórico e os anos 30 do século passado?
SPG: A partir da Revolução de 30, se inicia no Brasil o projeto de construção de uma economia moderna capitalista industrial, de organização de seu mercado de trabalho, de consolidação da unidade nacional, de construção de um Estado capaz de enfrentar os desafios de construção da infraestrutura de energia e transportes e de financiamento de seu setor privado.
A tentativa de construção de uma economia moderna industrial e capitalista no Brasil enfrentou forte oposição das classes hegemônicas tradicionais situadas no setor agropecuário, defensoras do neoliberalismo e da tradicional divisão internacional do trabalho que reserva ao Brasil o papel de produtor e exportador de produtos primários, e mais recentemente de território para a exploração das megaempresas multinacionais, sem capacidade de desenvolvimento tecnológico, importador de produtos industriais sofisticados e de  capitais predadores e especulativos.
O contraste entre os anos 30 e o período que se inicia com Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso é que neste último as classes hegemônicas brasileiras, em aliança com as classes hegemônicas do Império norte-americano, retomaram seu projeto permanente de congelar o Brasil como produtor primário, sem indústria de capital nacional, com a redução do Estado ao mínimo, sem capacidade de regulamentar e empreender, com a redução dos direitos dos trabalhadores e do custo do trabalho.
Vivemos, no momento atual, a desconstrução do projeto que se inicia em 1930 de construção de uma economia moderna capitalista industrial, soberana, e menos desigual.
Procuram as classes hegemônicas tradicionais finalizar a tarefa que iniciaram em 1990, e que se interrompeu em 2003, com a vitória do Presidente Lula nas eleições.
Como declarou o principal ideólogo e líder das classes hegemônicas, Fernando Henrique Cardoso, em um momento revelador de rara sinceridade:
“Nosso objetivo é acabar com a Era Vargas!”
 e agora procuram consagrar na Constituição, através de uma maioria corrupta no Congresso,  e de uma circunstância fortuita, seus desígnios antinacionais, antissociais, anti-trabalhador, anti-povo e sua política de subserviência diante do mega-capital internacional das grandes corporações produtivas e, em especial, financeiras.
O povo brasileiro não permitirá que os objetivos das classes hegemônicas e de seus representantes políticos, cuja natureza e instrumentos são antidemocráticos, concentradores de renda e de riqueza, contrários ao capital e ao trabalho nacionais, se consolide.
 O povo vencerá as eleições presidenciais de 2018 e o processo de construção de uma sociedade desenvolvida, dinâmica, democrática, mais igual, mais justa e soberana, que se iniciou em 1930, será retomado.
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