sexta-feira, 26 de maio de 2017

Carta aos xenófobos do Brasil

Por Fernanda Lelles, no blog Socialista Morena:

Sou baiana, criada em São Paulo, filha de uma baiana e um paulista, muito prazer.

Hoje, para minha tristeza, me deparei com duas notícias que encheram meu coração de desesperança. Em meio à triste tragédia que aconteceu em Manchester, quando um homem-bomba causou a morte de 22 pessoas, a maioria delas crianças e adolescentes, uma mulher chamada Nelma Baldassi, de Curitiba, comentou em sua página no Facebook: “Só lamento que tenha sido em Manchester e não na Bahia. Seria lindo ver aquela gente nojenta e escurinha da Bahia explodindo. Kkkkkkkkkkkk”.



Parece que o ódio saiu do armário no Brasil. A mulher não só odeia pessoas pelo Estado em que nasceram, como, ainda mais grave, odeia negros, e deseja a essas pessoas uma morte brutal. Uma chuva de protestos se seguiu e alguém que se identificou como “marido” dela atribuiu o racismo e o preconceito com os baianos ao uso de “remédios controlados”. O perfil foi apagado.



Depois de denunciar o post racista, a próxima notícia que leio é sobre a vereadora gaúcha Eleonora Broilo, do PMDB de Farroupilha, que afirmou que “nordestinos sabem se unir para roubar”. Como falas assim se tornam comuns sem que a gente faça nada para parar?

Eu tinha a sensação de que a xenofobia havia diminuído no Brasil, mas estava iludida em minha bolha. Comecei a pensar em quando eu era pequena, e de como ser baiano ou “nordestino” era mal visto pelas pessoas ao meu redor. Quando eu estava por nascer, minha mãe fez questão de ir para a Bahia, onde estavam os seus: sua base, seu alicerce, nossa família baiana. Nasci em um lugar de gente guerreira, lutadora e querida, em Bom Jesus da Lapa, interior da Bahia.

Dias depois já estava em São Paulo, onde minha mãe e meu pai viviam juntos, de modo que me criei, durante quase toda a vida, nesse estado e cidade. Mas desde muito pequena, aprendi que ser baiana em São Paulo era algo muito ruim. Quando voltava das férias na casa da minha vó falando baianês, as outras crianças riam de mim. E até cantavam “baiana, baiana, baiana”, como um modo de ofender, e perdi as contas de quantas vezes eu chorei. Também foi ensinado a essas crianças que ser baiano era ser menos gente.

Como resultado, quando eu tinha uns 12, 13 anos, me esforçava para não “pegar sotaque” ao voltar de férias da Bahia. Na escola, o bullying, que na época não tinha esse nome, era pesado. Assim como os colonizadores arrancam a cultura e crença do colonizado, os paulistas foram arrancando a Bahia que havia em mim. Cresci vendo meus colegas apontarem todas as coisas feias e bregas dizendo que era “muito baiano”.

Sempre me perguntei, de onde surgiu que baiano é feio ou brega? Todo mundo ia passar férias por lá e voltavam dizendo que era um lugar lindo, meus tios são lindos, minha mãe, minha vó, meus primos são todos lindos. Meus melhores amigos eu fiz foi lá, e eles são incrivelmente lindos. As cores, a comida e a música da Bahia são lindas, o Caetano é lindo de chorar de emoção. Não conseguia entender, não. A verdade é que até hoje não entendo.

Os anos passaram e sem perceber, quando notei, já tinha a postura e sotaque paulistano, já quase pensava como eles, quando votei pela primeira vez no Geraldo Alckmin. Mas quando eu revelava minha origem, eu via a xenofobia quase velada aparecer. Me diziam coisas como se pensassem ser elogios: “Você não parece baiana”, deve ser porque não tenho sotaque de lá, eu respondia. “Não, é que você é bonita”, ou “Você não tem cabeça chata”, ou ainda: “mas você é tão inteligente”. Quando eu questionava, eles nunca “queriam dizer” o que de fato diziam.

Na época de eleições presidenciais ouvi de um colega de trabalho que a culpa do Brasil estar afundado eram dos malditos nordestinos, que não queriam trabalhar e votavam no PT para viverem de esmolas. A opinião não era só dele, vi diversos comentários do tipo nas redes sociais, enquanto movimentos separatistas do Sul (de novo eles), viravam notícia ao dar sinais de que queriam se separar do Nordeste. Grande senso democrático, não, senhores? Àquela época eu ainda não sabia do pouco apreço que o brasileiro tinha pela democracia. Em 2016 fiquei sabendo.

Vi a Bahia mudar ano após ano, e, quando eu tinha 17 anos fui viver lá e trabalhei numa empresa de energia elétrica, que fazia inscrição para o “Luz para Todos”, projeto do governo Lula. Esse projeto levava luz para áreas rurais em que a eletricidade ainda não havia chegado, notem que aqui era 2004(!) e ainda existia um monte de lugar sem energia elétrica no Brasil. Assim como ainda existia um monte de gente passando fome no mesmo país em que a gente jogava comida fora.

Não é difícil entender o motivo do alto apoio na região às políticas sociais que chegaram com os governos petistas. Gente que até então não tinha energia elétrica, comida ou qualquer auxílio e muito menos oportunidade de emprego, de repente viram a vida melhorar. Se nunca ninguém havia olhado pela região, como não ser agradecido ao primeiro partido que fez isso? Não estou com isso querendo canonizar Lula e/ou o PT, apenas ressaltando mudanças práticas que ocorreram na vida de muitos brasileiros.

Quando alguém de São Paulo, do Rio ou do Sul do Brasil atribui à preguiça o baiano votar em determinado partido como sinal de não QUERER trabalhar, sempre me pareceu muito simplista, coisa de quem não conhece a realidade do próprio país, e com isso, reproduz discurso também racista. Isso mesmo: a preguiça atribuída a nós nordestinos é uma falácia racista, que já foi inclusive contestada em tese de doutorado na USP, pela antropóloga Elisete Zanlorenzi, que defende que o preconceito contra baiano e/ou nordestino tem origem na elite escravocrata, que tentava depreciar os negros, maioria na população da Bahia, e se propagou com uma reação à Lei Áurea. Ou seja, como eles queriam deixar de serem escravos, não gostavam de trabalhar.

Em sua pesquisa, Zanlorenzi comprovou justamente o contrário: ao analisar o calendário de festas e comparecimento ao trabalho em uma empresa com sede em Salvador e em São Paulo, constatou maior abstinência na capital paulista. A autora também comparou horas trabalhadas e os baianos também saíram na frente. Até a fama de festeiro do povo baiano ficou para trás: a festa é para os de fora, para muitos baianos o momento é de trabalho em dobro para ganhar com o turismo.

Então, é bom pensar bem na próxima vez em que forem tentados a repetir essas frases de ódio à população seja do Norte ou do Nordeste do país. Vocês não são melhores e nem piores que ninguém, talvez vocês tenham nascido em uma região com mais recursos, em que pelo fácil acesso aos portos, foi mais irrigada por investimentos, e, consequentemente, teve mais desenvolvimento. Isso não é mérito seu, você não fez nada para isso. Então, por favor, parem de desqualificar pessoas por preconceito.

Enquanto vocês fazem isso, os nordestinos “burros” reverberam a variedade da nossa cultura mundo afora. Olhem para os geniais Jorge Amado e para João Ubaldo Ribeiro; para o talentoso Wagner Moura; para o próprio Caetano, Gil e Novos Baianos; olhem para o Ariano Suassuna, para as retadas Gal e Maria Bethânia. Tem para todos os gostos, de Pitty a Ivete Sangalo. Poderia citar muitos outros, mas me contento com esses.

A gente está em 2017, mas como parece 1964, achei que era preciso dizer. Melhoremos, Brasil!

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