terça-feira, 31 de julho de 2012

Fracassa Tratado de Comércio de Armas


Instituto Humanitas Unisinos

Brasil. Posição obscura
Assistiu-se na última sexta-feira ao fracasso das negociações, na ONU, para a criação de um Tratado de Comércio de Armas (ATT Arms Trade Treaty) entre os 193 países membros da organização. O resultado não foi uma novidade para os organismos e grupos humanitários que acompanhavam todo o processo. Seria se, de fato, os grandes comerciantes de armas tivessem aderido ao projeto de um mundo com menos violência e mortes.
Não surpreende, por exemplo, que principalmente Estados Unidos e Rússia tenham obstruído a chance do pacto em favor do controle da venda de armas, já que é um comércio muito lucrativo e que ajuda a alimentar e muito as suas economias. No entanto, o que surpreende, num primeiro momento, é a obscura posição do Brasil, que embora não tenha se posicionado contundentemente contra o Tratado, também não liderou e nem se esforçou, como líder regional, pela sua efetivação.
O que se pretendia com o Tratado de Comércio de Armas?
O mundo do comércio de armas é um assunto muito sério, que remete a uma verdadeira carnificina humana, ou seja, é um mundo lucrativo que cresce à custa da morte de civis em diferentes lugares do mundo. Segundo o Instituto Internacional de Estudos para a Paz de Estocolmo (SPRI), no último quinquênio (2007-2011), o comércio mundial de armas cresceu 24%. Esse expansivo setor, só no comércio de armas convencionais movimenta cerca de 70 bilhões de dólares, anualmente, e estima-se que tais armamentos são responsáveis pela morte de 750.000 pessoas por ano.
Ainda, de acordo com o jornalista Cristiano Dias, os números do SPRI apontam que “os gastos com o setor de defesa consumiram US$ 1,74 trilhão no mundo todo. A maior parte dessa movimentação vem dos EUA, que gastaram US$ 711 bilhões no ano passado, pouco mais de 40% do total mundial”.
Na ONU, desde 2006, vem ocorrendo debates em torno de uma maior transparência e por uma regulamentação mais rígida para o comércio internacional de armas. E antes disso, ainda nos anos 1990, segundo Marie Ann Wangen Krahn, coordenadora do SERPAZ, já havia um movimento em favor de um pacto com critérios mínimos para a transferência de armas (pistolas, munições, caças, mísseis e tanques), “impulsionado por um grupo capitaneado por Oscar Aras, ex-presidente da Costa Rica e prêmio Nobel da Paz de 1987”.
Para entender o que se almejava com a aprovação do Tratado de Comércio de Armas é interessante citar as diretrizes - documento provisório (14-07-2012), que norteou o debate na ONU - apresentadas, em entrevista ao IHU, por Marie Ann Wangen Krahn:
1. Promover as metas e os objetivos da Carta das Nações Unidas;
2. Estabelecer os mais altos padrões comuns internacionais para a importação, exportação e transferência de armas convencionais;
3. Prevenir e erradicar a transferência ilícita, a produção ilícita e a intermediação ilícita de armas convencionais e o seu desvio para mercados ilícitos, inclusive para o uso em crime organizados transnacional e em terrorismo;
4. Contribuir para a paz, segurança e estabilidade internacional e regional através do impedimento de transferências internacionais de armas convencionais que contribuam ou facilitem o sofrimento humano, violações da lei internacional dos direitos humanos e da lei internacional humanitária, obrigações internacionais, conflito armado, desalojamento de pessoas, crime organizado transnacional, atos terroristas. Isso tudo mirando a paz, a reconciliação, a segurança, a estabilidade, o desenvolvimento sustentável social e econômico;
5. Promover a transparência e a prestação de contas na importação, exportação e transferências de armas convencionais;
6. Que seja universal em sua aplicação.
Como se verifica, foram propostas fundamentais, que poderiam contribuir na diminuição do número de mortos em conflitos por todo o planeta. Uma temática crucial na agenda humanitária dos mais diferentes grupos empenhados na defesa dos direitos humanos, e em prol da convivência pacífica na, e entre, as nações. Infelizmente, não houve o consenso necessário para a aprovação dessas diretrizes. Sobre esse assunto, o Governo brasileiro tem pouco a dizer ou a lamentar, uma vez que apresenta seu lado sombrio nesta temática, sendo que sua política armamentista é a responsável pela embaraçosa posição que vem assumindo, como veremos abaixo.
“Brasil! Qual é o teu negócio? O nome do teu sócio?”
A posição brasileira quanto ao tema do comércio internacional de armas, faz lembrar a composição de Cazuza, intitulada “Brasil”. Afinal de contas, que país é esse? Quais negócios defende? Para os interesses de quem, o país que é considerado progressista trabalha? Assim como vem tratando outras frentes, como a questão indígena e a reforma agrária, também no quesito transparência na política armamentista, o país anda mal.
Informações estarrecedoras sobre o Brasil foram apresentadas em reportagem de Rubens Valente. São dados inéditos sobre a exportação de material bélico, que estavam sob sigilo militar. Neles se aponta que, de janeiro de 2001 a maio de 2002, foram registradas 204 operações de exportação de armas de munição, somando 315 milhões de dólares. E para mostrar uma abominável face do Brasil, nas relações com a comunidade externa, documentos indicam que o país vendeu 5,8 milhões de dólares em bombas de fragmentação e incendiárias para o ditador Robert Mugabe, do Zimbábue.
Na reportagem, Valente recorda a posição brasileira, em relação às bombas de fragmentação, dizendo que, “em 2008, mais de cem países assinaram a convenção que veta a fabricação e venda do (deste) tipo de bomba. Brasil, EUA e Rússia, dentre outros, recusaram-se”, evidenciando sua falta de transparência neste assunto.
Não é por acaso que o país não se posiciona contundentemente em favor da transparência no comércio de armas. Uma de suas falsas justificativas é a de que isso “poderia expor os recursos e a capacidade dos países [...] de sustentar um conflito prolongado”.
Na realidade, de acordo com o jornalista Jânio Freitas, tal justificativa pretende “esconder o fato de que o Brasil exportador de armas está envolvido em monstruosidades que finge condenar” como, por exemplo, na produção e venda destas bombas de fragmentação. Ele relembra que elas “são proibidas por acordo internacional: não têm alvo preciso, desabrocham no ar em milhares de bolas de aço que atingem a população civil em áreas imensas”. O que leva o jornalista a concluir que é para “esse Brasil opaco que a falta de transparência dá proteção. Como sua continuidade permitirá que a Rússia arme Bashar AL Assad, e os Estados Unidos, a Inglaterra, e o Brasil também, façam o mesmo pelo mundo todo”.
Ainda no calor da semana em que se discutiu a possibilidade de um efetivo acordo para o comércio de armas, Cristian Wittmann, da Universidade Federal do Pampa, destacou que “74 Estados apóiam de forma justa e perfeita um texto considerado positivo, de acordo com a rede “Control Arms” que compreende a sociedade civil organizada”, mas, lamentavelmente, o Brasil não faz parte deste grupo. Wittimann também lembrou que “o Brasil foi responsabilizado recentemente pela comunidade nacional e internacional por ter vendido inúmeras armas, incluindo desde revólveres a minas terrestres ao regime ditatorial da Líbia”. Assim, o Brasil caminha na contramão da história, o que leva Wittmann a considerar que “um ponto de vista relevante na posição brasileira é a questão econômico-comercial da produção e exportação desse armamento”.
O professor de relações internacionais da UFPel, Gustavo Vieira em entrevista ao IHU atenta para o fato de que “dados mais precisos, como para quais países vão os armamentos brasileiros e quanto, não são disponibilizados.” E isto torna impossível controlar o destino e a utilização destas armas. O Ministério da Defesa e o Ministério das Relações Exteriores são responsáveis pelo controle da produção e exportação das armas, mas bloqueiam essas informações. Geralmente, elas chegam por fontes nem sempre confiáveis.
Na opinião de Vieira, “o Brasil ainda está em busca da afirmação da sua soberania e a produção de armas tem a ver com a lógica da persuasão. Contudo, a tal persuasão só é útil quando há intenção de agredir, caso contrário é um potencial inútil”. Os custos “tanto financeiro, na medida em que há parceria público-privada e os financiamentos subsidiados, desvio de prioridades sociais, de cooperação, manchas na imagem do país”, tornam esse caminho extremamente inglório, uma vez que o país tradicionalmente privilegia, em suas relações externas (de acordo com o artigo 4o da Constituição), “a prevalência dos direitos humanos, defesa da paz, solução pacífica de controvérsias, e cooperação entre os povos”. O que, portanto, deixa estampada as contradições do Governo brasileiro.
“E eu aqui na praça dando milho aos pombos”
Como diz a belíssima composição de Zé Geraldo, “isso tudo acontecendo e eu aqui na praça dando milho aos pombos”, pois enquanto a maior parte da população está presa em seus afazeres cotidianos, lutando para garantir sua sobrevivência e sonhos de consumo, uma imagem cinzenta do Brasil começa a ganhar tonalidades, com o aprofundamento de políticas que não condizem com a garantia dos direitos humanos para todos os povos.
A analista de relações internacionais, Daniela Alves, chamou a atenção para o fato de que “o pouco que os brasileiros sabem sobre ela (as negociações para o Tratado de Comércio de Armas) se deve à divulgação da mídia e das parcelas da sociedade civil que estão diretamente envolvidas, pois não são disseminadas notas oficiais do governo sobre a iniciativa, assim como não se tem nenhuma divulgação clara sobre qual será a linha adotada”.
Desde 2003, dizem que o Brasil é governado por um partido de esquerda, ao menos este é o discurso. Que estranha esquerda é esta que toma decisões unilaterais, desrespeitando os direitos humanos e contribuindo para o assassinato de civis inocentes, com a exportação de armas, legais ou não, para diferentes cantos do mundo? Onde estão as vozes da liberdade, que não se atrelam com esse tipo de política escondida pelo discurso de defensora dos direitos humanos?
Por sorte, alguns organismos e parcelas da sociedade civil, em vários países, vêm participando deste processo de negociação do Tratado. Algumas são: Anistia Internacional do Chile, a Campanha Colombiana Contra Minas, a Rede Nacional Iniciativas pela Paz contra a Guerra da Colômbia, o Serpaj do Equador, o Instituto Sou da Paz e o Serpaz do Brasil, a Associação para Políticas Públicas, o Parlamentarians for Global Action e a Campanha Ecumênica do Conselho Mundial de Igrejas. É chegado o momento de que essa cadeia de protagonistas pela paz ganhe novos membros contra o comércio da morte e em favor da cultura da vida. O fracasso de sexta-feira não significa que a batalha esteja totalmente perdida.

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