segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Certas raízes de uma certa Espanha




Revistas femininas e livros de educação de senhoritas publicados na Espanha do generalíssimo ditador Francisco Franco bombardearam por décadas a sociedade nacional com uma visão conservadora sobre a mulher. Muitos dos espanhóis e das espanholas se insurgiram contra essas lições. Muitos outros, porém, foram forjados nessa argila e permanecem por aí.
Data: 20/01/2013
Aqui estão algumas anotações para ler e, depois, pensar:

• Ao longo da vida, a missão da mulher é servir. Quando Deus fez o primeiro homem, pensou: “Não é bom que ele fique sozinho”. E formou a mulher, para sua ajuda e companhia, e para que servisse de mãe. A primeira ideia de Deus foi o homem. Pensou na mulher depois, como um complemento necessário, isto é, como algo útil.

• Uma mulher que atenda às lides domésticas com toda regularidade terá ocasião de fazer ginástica como não faria nunca, se trabalhasse fora de casa. Só a limpeza e o brilho dos soalhos já constituem um exemplo eficaz, e se pensarmos nos movimentos que são necessários para tirar o pó dos lugares altos, limpar os vidros, escovar os ternos, veremos que são tantos que, mesmo que não tenham como finalidade estética o corpo feminino, acabam sendo eficientíssimos.

• As mulheres nunca descobrem nada: lhes falta, é evidente, o talento criador, reservado por Deus às inteligências varonis. Não podem fazer nada a não ser interpretar, melhor ou pior, o que os homens fazem por elas.

• A vida de toda mulher, apesar de tudo que ela queira simular – ou dissimular – não é outra coisa além do eterno desejo de encontrar a quem se submeter.

• Tenha preparada sempre uma comida deliciosa para quando ele regressar do trabalho. De preferência, seu prato favorito. Ofereça-se para tirar seus sapatos. Fale em tom suave, relaxado e aprazível. Prepare-se: retoque a maquiagem, use uma fita nos cabelos, faça-se um pouco mais interessante para ele. Seu duro dia de trabalho exige um pouco de entusiasmo, e um dos deveres da mulher é proporcionar-lhe isso. Escute-o, deixe-o falar primeiro; lembre-se que os assuntos dele são sempre mais importantes que os seus. Os interesses das mulheres são sempre triviais, quando comparados aos dos homens.

• Uma vez que ambos tenham se recolhido à alcova, prepare-se para o leito o mais rápido possível, lembrando sempre que, embora a higiene feminina seja da maior importância, seu marido não quer esperar. No que diz respeito à possibilidade de relações íntimas, é importante recordar suas obrigações matrimoniais: se ele sugerir a união, concorde humildemente, levando sempre em conta que a satisfação do homem é mais importante que a da mulher. E se ele pedir práticas sexuais insólitas, seja obediente e não se queixe.

• Lembre-se: quando alcançar o momento culminante, um pequeno gemido será suficiente para indicar qualquer gozo que porventura você tenha conseguido experimentar.

Isso que você acaba de ler foi tirado de revistas femininas e livros de educação de senhoritas publicados na Espanha do generalíssimo Francisco Franco, caudilho pela graça de Deus, como aquele galego mirrado se fazia chamar.

O gorducho perverso, que tiranizou o país de Joan Miró e Pablo Picasso entre 1939 e 1975, e, aliás, por um tempo a mais, já que ele morreu mas o franquismo continua saracoteando por aí, impunha esse tipo de lições para a Espanha.

Muitos desses conselhos são dos anos 60, quando o mundo – e as mulheres – estavam descobrindo os Beatles, a minissaia e a pílula.

Muitos dos espanhóis e das espanholas que foram bombardeados de maneira incessante por esse tipo de lição se insurgiram, e não me refiro apenas aos progressistas, aos da esquerda espanhola: me refiro a quem tinha uma visão minimamente razoável do mundo, da vida e do ser humano.

Muitos outros, porém, foram forjados nessa argila. E tiveram filhos e filhas. E alguns desses filhos e filhas se tornaram políticos. E vários deles se fizeram herdeiros de quem defendia essa espécie de aberração.

Vendo a Espanha do Partido Popular de José Maria Aznar, o primeiro-ministro de nefasta memória, e agora de Mariano Rajoy, da mesma turma, e todos os seus seguidores, releio essas lições, e penso não apenas na forma de tratar a mulher: na forma de ver a vida e tratar o país.

Há quem tenha convivido com essas aberrações e superado essa bizarrice toda. Há quem conviveu com tudo isso e depois, décadas depois, guardou no fundo da alma uma certa nostalgia daqueles bons tempos em que essas eram as obrigações e deveres de uma mulher respeitável.

Tudo indica que os que governam hoje a Espanha devem ter pensado que era preciso voltar a esses bons e velhos tempos. Fazendo algumas adaptações, claro.

Por exemplo: onde se lia que a satisfação do homem é sempre mais importante que a da mulher, leia-se hoje que a satisfação dos bancos é sempre mais importante que a de um país.

E onde se lia que a primeira ideia de Deus foi o homem, e que pensou na mulher depois, como um complemento necessário, isto é, como algo útil, leia-se que a primeira ideia de Deus foi o capital, e que pensou no ser humano depois, como um complemento inevitável, isto é, inútil.

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