Gaudêncio Penaforte
19/05/2013
Ex-garoto prodígio de Harvard, o economista
norte-americano Jeffrey Sachs notabilizou-se internacionalmente nos anos
80 e 90 como conselheiro para reformas econômicas e ajustes estruturais
de governos de países em desenvolvimento na América Latina, no Leste
Europeu e na África, destacando-se como ardoroso defensor das virtudes do mercado e mentor de alguns dos experimentos neoliberais mais radicais.
A
Bolívia serviu como primeiro laboratório de teste da sua "terapia de
choque", que depois seria aplicada em vários países em transição do
sistema comunista para economia de mercado. Esta sinistra expressão,
cunhada pelo próprio Sachs, refere-se à liberalização acelerada da
economia, por meio da abertura comercial, corte drástico de gastos
públicos, fim dos subsídios estatais, adoção do câmbio livre e
privatização em larga escala de empresas e ativos controlados pelo
Estado.
Outra característica deste tratamento de choque é o total
desprezo pelos chamados "efeitos colaterais". Isso significa, na
prática, ignorar os elevados custos sociais, medidos em termos de taxas
galopantes de desemprego, aumento da pobreza e, como aconteceu na Rússia, escalada da taxa de suicídio. Tudo em nome da estabilização da economia.
O
inventor da "terapia de choque" e patrono do neoliberalismo foi o
economista Milton Friedman, que testou a sua fórmula de reformas
pró-mercado no Chile, sob a sangrenta ditadura de Augusto Pinochet.
Sachs, uma espécie de antípoda de Che Guevara, ajudou a destroçar a já
combalida economia boliviana, deixando para trás um país devastado.
Com
a derrocada dos regimes comunistas e o colapso da União das Repúblicas
Soviéticas, Sachs encontrou terreno fértil para o seu apostolado sobre a
redenção prometida pelo neoliberalismo. Faria jus, merecidamente, ao
título que nunca lhe foi dado de patrono dos oligarcas russos, que se
apropriaram das estatais a preço vil - modelo que o Brasil tentou copiar
na era FHC.
Agora eis que Sachs, convertido na última década em
militante da luta contra a pobreza na África – fenômeno que prefere
abordar como algo atávico, não consequência da voracidade do capital
financeiro internacional, exacerbada pelas políticas neoliberais que
ajudou a disseminar pelo mundo – reaparece na América Latina como
consultor do governo do Paraguai.
As poucas informações que se
tornaram pública dão conta que, em 24 de setembro de 2012, ele teria
assinado um contrato de sete meses para assessorar o governo do
contestado presidente Frederico Franco em matéria de política de
energia, especialmente nas negociações com o grupo Rio Tinto para a
implantação de uma indústria de alumínio.
Todavia, o seu trabalho
só ganhou visibilidade a uma semana da eleição presidencial, realizada
no último dia 21 de abril, quando a mídia paraguaia divulgou com
estardalhaço que o "principal assessor econômico da ONU afirma que a
dívida de Itaipu já se pagou" (ABC Color, 15/04/13).
O vazamento
ardilosamente orquestrado às vésperas do pleito presidencial de um
suposto relatório confidencial, ao qual parece que todos os principais
jornais do país tiveram acesso simultaneamente, colocou Itaipu no centro
do debate eleitoral. De acordo com fragmentos reproduzidos pela mídia
guarani, Sachs teria apresentado a seguinte conclusão: "sob presunções
financeiras razoáveis, o Paraguai já pagou a sua parte das dívidas de
Itaipu por meio da exportação de eletricidade para o Brasil durante um
período de mais de 25 anos."
E prossegue no seu argumento: "As
dívidas remanescentes nos livros contábeis deveriam ser canceladas por
meio de um novo acordo com o Brasil. O fato de o Paraguai ainda ter
dívidas em aberto decorre do fato de que ao longo dos anos o país tem
sido sobretaxado pelo pagamento de juros e subcompensado pela
eletricidade exportada [para o Brasil]".
Com base nesta premissa,
Sachs assume o seu papel preferido de conselheiro para vaticinar: "é
fortemente recomendado que o próximo governo do Paraguai conclame o
Brasil a cancelar as dívidas remanescentes e a estabelecer uma tarifa
mais favorável e realista [para a energia cedida pelo Paraguai]."
Como
uma confissão antecipada da análise superficial e aligeirada na qual
baseou suas conclusões assertivas, Sachs se apressa em fazer uma
desconcertante ressalva: "É claro que os termos revisados [do novo
acordo a ser firmado] seriam baseados numa clara e transparente
análise da história dos pagamentos da dívida, das taxas de juros, das
exportações de eletricidade, e de outros fatores que contribuíram para a
dinâmica da dívida". (Grifo do autor).
Bingo!
O conselheiro contratado a peso de ouro concluiu o seu "relatório
confidencial" recomendando ao governo paraguaio que faça ou encontre
alguém disposto a fazer o trabalho que supostamente ele deveria ter
feito, mas admite candidamente que não o fez, se quisesse que as suas
conclusões fossem realmente levadas a sério.
Sintomaticamente, o
jornal ABC Color, o mais ardoroso crítico do Tratado de Itaipu,
registrou a seguinte manifestação do engenheiro paraguaio Guilhermo
López Flores, membro do Conselho da Hidrelétrica de Yacyretá: "se não
sabe algo tão básico como quem é o devedor, é legítimo duvidar da
qualidade do resto da análise do economista norte-americano." E conclui
que, como especialista, "teria chegado a melhores conclusões por uma
ínfima fração dos honorários do Sr. Sachs". (ABC Color, 16/04/13).
Só
faltou Sachs ter conjecturado que se, durante as escavações para a
construção da barragem, tivesse sido encontrado um improvável veio de
ouro ou diamante em meio aos derrames de basalto, a obra poderia ter
sido integralmente paga antes mesmo de gerar o primeiro megawatt de
energia.
Mas a simples evocação dessa hipótese é perigosa, pois
pode induzir parte da mídia paraguaia a levantar a suspeita de que de
fato uma mina de ouro foi descoberta no sítio de Itaipu e o Brasil teria
se apropriado de toda riqueza extraída.
Pelo menos das passagens
pinçadas do "relatório confidencial" divulgadas pela mídia paraguaia,
depreende-se que Sachs não foi tão longe a ponto de propor a
privatização de Itaipu, como fez com o setor de energia e a indústria de
base na Rússia, o que mostra uma evolução do seu pensamente econômico!
Mas
não surpreenderá se ele vier a incluir a proposta de privatização do
setor elétrico paraguaio como parte da sua conhecida "terapia de
choque". Com tanta energia disponível, o setor é a cereja do bolo da
emergente economia paraguaia.
A existência do Relatório Sachs
comissionado pelo governo paraguaio veio a público num momento em que a
credibilidade dos economistas de Harvard está em baixa em razão do
recente escândalo em torno da clamorosa fraude acadêmica praticada pelos
economistas Ken Rogoff e Carmen Reinhart.
Para quem não vem
acompanhando o assunto, é de autoria da dupla o estudo "Crescimento em
uma época de endividamento", o qual chegou à conclusão de que quando o
nível de endividamento de um país ultrapassa a marca de 90% do PIB
(Produto Interno Bruto), a média de crescimento despenca. Esta
correlação vinha sendo invocada por governos de países europeus e dos
Estados Unidos para justificar draconianos cortes orçamentários e outras
medidas de austeridade fiscal.
Acontece que os autores do
referido estudo foram desacreditados quando um estudante de doutorado de
28 anos, Thomas Herndon, resolveu revisar os seus métodos de cálculos e
constatou que os resultados nos quais os dois renomados economistas de
Harvard basearam-se eram fajutos. Um erro nas planilhas de Excel excluiu
dados importantes e provocou graves distorções nos resultados. Feitas
as correções, Herndon demonstrou que os países com endividamento
superior a 90% do PIB alcançaram crescimento médio de 2,25%.
A
favor de Sachs, registre-se que depois de duas décadas em Harvard, em
2002 ele a trocou pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque, com um
contrato da ordem de US$ 300 mil por ano. Na Big Apple, iniciou também
uma bem-sucedida carreira de conselheiro especial do Secretário-Geral da
ONU. Sua apologia das políticas neoliberais, desacreditadas pelo
desastre que culminou com o colapso financeiro de 2008, deu lugar a
preocupações com pobreza e desenvolvimento sustentável, temas em alta na
agenda dos organismos internacionais.
Mas suas novas convicções
não resistem a um bom contrato de consultoria, mesmo que o contratante
seja um governo repudiado em toda a região pela forma ilegítima como foi
instaurado, fruto do golpe parlamentar de junho de 2012, que apeou do
poder o presidente democraticamente eleito Fernando Lugo, que acaba de
ser eleito senador pelo voto popular.
Mas o currículo
internacional de Sachs mostra que ele nunca teve pruridos em se aliar a
governos não-democráticos nem nunca exigiu credenciais democráticas dos
governantes aos quais prestou serviços a soldo. Conforme já registrado, o
primeiro experimento neoliberal deu-se no Chile de Pinochet. Portanto, a
terapia de choque neoliberal, da qual Sachs se tornou o principal
proselitista, nasceu umbilicalmente vinculada ao autoritarismo.
A
volta do príncipe do neoliberalismo à América Latina, agora na condição
de consultor do governo do Paraguai, poderá render novo fiasco, mesmo
que o futuro governo colorado do presidente eleito Horacio Cartes, a ser
empossado em agosto próximo, decida mantê-lo na sua folha de pagamento.
Em
entrevista ao ABC Color, ele se oferece para assessorar o governo
paraguaio numa possível renegociação do Tratado de Itaipu e se vangloria
de ter "trabajado mucho con gobiernos brasileños" e de manter "buenas
relaciones con Brasil". (ABC Color, 24/04/13) Alguém precisa avisá-lo de
que o governo FHC terminou em 2002 e que desde então o Brasil não segue
mais a cartilha neoliberal.
Por fim, as suas conclusões
apressadas e oportunistas sobre Itaipu, sem uma "clara e transparente
análise da história de pagamentos da dívida", conforme admitiu o próprio
economista, demonstram mais uma vez que ele está disposto a defender a
posição que convém ao seu cliente, sem qualquer compromisso com a
verdade e com as conseqüências políticas, econômicas e sociais – como
fez com sua "terapia de choque" em diversos países.
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