sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Laços indiscretos entre EUA e neo-nazistas

Obcecada com vitória geopolítica na Europa Oriental, Washington envolveu-se com grupos que defendem “supremacia branca” e atacam comunistas, anarquistas e judeus
Por Max Blumenthal, no Alternet | Tradução Cauê Seignemartin Ameni
Quando os protestos na capital da Ucrânia chegaram a um desfecho, este fim-de-semana, as demonstrações de extremistas fascistas e neo-nazistas assumidos tornaram-se evidentes demais para serem ignoradas. Desde o início dos protestos, quando manifestantes lotaram a praça central para combater a polícia ucraniana e exigir a expulsão do corrupto presidente pró-russia Viktor Yanukovich, as ruas estavam cheias de pelotões de extrema-direita, prometendo defender a pureza étnica de seu país.
Bâners dos partidários da “supremacia branca” e bandeiras dos confederados norte-americanos [escravocratas] foram fixadas dentro da prefeitura de Kiev ocupada. Manifestantes içaram bandeiras da SS nazista e símbolos do poder branco sobre a estátua tombada de Lenin. Depois que Yanukovich fugiu do palácio estatal de helicóptero, os manifestantes destruíram a estátua dos ucranianos que morreram lutando contra a ocupação alemã durante a Segunda Guerra Mundial. Saudações nazistas e o símbolo do Wolfsangel tornaram-se cada vez mais comuns na praça Maiden. Forças neo-nazi estableceram “zonas autonômas” em torno de Kiev.
Um grupo anarquista chamado União Ucraniana Antifascista tentou juntar-se aos manifestantes de Maiden, mas encontrou dificuldades, com ameaças de violência das gangs neo-nazis itinerantes da praça. “Eles disseram que os anarquistas são gente como judeus, pretos e comunistas. E nem havia comunistas entre nós, foi um insulto”, ”, disse um integrante do grupo.
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“Está cheio de nacionalistas aqui — incluindo nazistas”, continuou o antifascista. “Eles vieram de toda Ucrânia, e são cerca de 30% dos manifestantes.”
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Um dos “três grandes” partidos políticos por detrás dos protestos é o ultra-nacionalista Svoboda, liderado por Oleh Tyahnybok, que clama pela “libertação” de seu país da “máfia judaico-moscovita”. Após a condenação, em 2010, de John Demjanjuk, um vigilante dos campos de extermínio que teria participado da morte de 30 mil pessoas no campo de extermínio nazista de Sobibor, Tyahnybok propôs à Alemanha  declará-lo um herói que “lutou pela verdade”. No parlamento ucraniano, onde o Svoboda detém inéditos 37 assentos, o vice de Tyahnybok, Yuiy Mykhalchyshyn, cita com frequência Joseph Hoebbels. Ele próprio fundou um thinktank originalmente chamado de Centro de Pesquisa Política Goebbels. Segundo Per Anders Rudling, acadêmico especialista em movimentos neofascista na Europa, o auto-intitulado “nacional socialista” Mykhalchyshyn é o principal elo entre a ala oficial do partido Svoboda e as milícias neonazistas, como o Right Sector.
Right Sector é um grupo nebuloso, que se auto-intitula “nacionalista autônomo”. Seus membros são identificados pelo jeito skinhead de trajar, estilo de vida ascético e fascínio pela violência nas ruas. Armado com escudos e porretes, o grupo ocupou as linhas de frente das batalhas nas manifestações deste mês, enchendo o ar com seu tradicional canto: “A Ucrânia, acima de tudo!”. Em um vídeo-propaganda recente [veja abaixo], o grupo prometeu lutar “contra a degeneração e o liberalismo totalitário, pela tradição moral nacional e os valores familiares.” Com o Svoboda ligado a uma constelação de partidos neofascistas internacionais por meio da Aliança dos Movimentos Nacionais Europeus, o Right Sector promete levar seu exército de jovens desiludidos a “uma grande Reconquista Europeia”.
As políticas abertamente pró-nazistas do Svoboda não impediram o senador americano John McCain, de falar num comício do partido, ao lado de Tyahnybok; nem evitaram que a secretária-assistente do Estado, Victoria Nuland, desfrutasse de um encontro amigável com o líder do Svoboda, em fevereiro. Ansioso por se defender de acusações de anti-semitismo, o dirigente hospedou recentemente o embaixador israelense da Ucrânia. “Eu gostaria de pedir aos israelenses que respeitassem também nossos sentimentos patriotas”, Tyahnybok observou. “Provavelmente, todos os partidos do Knesset [parlamento de Israel] são nacionalistas. Com a ajuda de Deus, deixe-nos ser assim também.”
Numa conversa telefônica vazada com o embaixador dos EUA na Ucrânia, Geoffrey Pyatt, Nuland revelou seu desejo de que Tyahnybok permaneça “do lado de fora”, mas que se consulte com Arseniy Yatsenyuk, o preferido dos EUA para substituir Yanukovich, “quatro vezes por semana.” Em 5 de dezembro de 2013, na Conferência da Fundação EUA-Ucrânia, Nuland destacou que Washington havia investido 5 bilhões de dólares para “desenvolver habilidades e instituições democráticas” na Ucrânia, embora não tenha acrescentado nenhum detalhe.
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“O movimento da praça Maiden incorporou os princípios e valores que são os pilares de todas as democracias livres”, proclamou Nuland.
Duas semanas depois, 15 mil membros do Svoboda realizaram uma cerimônia com tochas na cidade de Lviv, em homenagem a Stepan Bandera, colaborador nazista da Segunda Guerra Mundial e então líder da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN-B), pró-fascista. Lviv tornou-se o epicentro das atividades neo-fascistas na Ucrânia, com os dirigentes eleitos do Svoboda liderando uma campanha para renomear o aeroporto (em homenagem ao líder fascista) e a antiga Praça da Paz. Isso, eles já conseguiram. Ela honra, agora, o Batalhão Nachtigall, rememorando um grupo, ligado à OUN-B, que participou diretamente do Holocausto. “Paz’ é um resquício dos estereótipos soviéticos”, explicou um deputado do Svoboda.
Reverenciado pelos nacionalistas ucranianos como legendário lutador da liberdade, a verdadeira história de Bandera foi infame, na melhor das hipóteses. Depois de participar da campanha para assassinar ucranianos que defendiam a pacificação com os poloneses, durante a década de 1930, as forças de Bandera determinaram-se a  limpar etnicamente a Ucrânia ocidental dos poloneses, entre 1943 e 1944. No processo, mataram mais de 90 mil poloneses e muitos judeus, a quem o seguidor  mais destacado de Banderas, o “primeiro ministro” Yaroslav Stetsko, estava determinado a exterminar. Bandera aferrou-se à ideologia fascista mesmo nos anos do pós-guerra, defendendo uma Europa etnicamente pura e totalitária, enquanto o Exército Insurgente Ucraniano (UPA), ligado a ele, travava uma luta armada sem futuro contra a União Soviética. O banho de sangue só cessou quando agentes da KGB o assassinaram em Munique, em 1959.
As conexões da Direita
Muitos membros sobreviventes da OUN-B fugiram para a Europa Ocidental e para os EUA – por vezes, com ajuda da CIA –, onde forjaram silenciosamente alianças políticas com elementos da direita. “Você tem que entender, nós somos uma organização subterrânea. Nós passamos anos em silêncio, alcançando posições de influência”, disse um membro ao jornalista Russ Bellant, que documentou o ressurgimento do grupo nos Estados Unidos, em seu livro de 1988, Velhos nazistas, Nova Direita, e o Partido Republicano.
Em Washington, a OUN-B reconstitui-se sob a bandeira do Comitê do Congresso Ucraniano para os EUA [Ukrainian Congress Committee of America (UCCA)], uma organização composta por “frentes 100% OUN-B”, segundo Bellant. Em meados da década de 1980, o governo Reagan ligou-se a membros da UCCA. O líder do grupo, Lev Dobriansky, serviu como embaixador nas Bahamas, e sua filha, Paula, teve um posto no Conselho de Segurança Nacional. Reagan recebeu pessoalmente Stetsko, o líder banderista que supervisionou o massacre de 7 mil judeus em Lviv, na Casa Branca, em 1983.
“Seus problemas são nossos problemas”, disse Reagan para o colaborador nazista. “Seu sonho é o nosso sonho.”
Em 1985, quando o Departamento de Justiça lançou a cruzada para capturar e processar os criminosos de guerra nazistas, a UCCA agiu rapidamente, pressionando o Congresso a travar a inciativa. “A UCCA também tem desempenhado um papel de liderança na oposição de investigações federais dos supostos criminosos de guerra nazistas, desde o início da relação entre as entidades, no final dos anos 1970″, escreveu Bellant. “Alguns membros da UCCA têm muitas razões para se preocupar. Elas remontam a 1930.”
Ainda hoje uma força lobista ativa e influente em Washington, a UCCA não parece ter abandonado sua reverência pelo nacionalismo banderista. Em 2009, no 50º aniversário da morte de Bandera, o grupo proclamou-o “um símbolo de força e justiça para seus seguidores”, que “continua inspirando a Ucrânia hoje em dia”. Um ano depois, o grupo homenageou o 60º aniversário da morte de Roman Shukhevych, o comandante do Batalhão Nachtigall da OUN-B, que massacrou judeus em Lviv e Belarus, chamando-o de “herói” que “lutou pela honra e justiça…”
De volta a Kiev em 2010, o então presidente Viktor Yuschenko concedeu a Bandera o título de “Herói Nacional da Ucrânia”, marcando o ponto culminante dos seus esforços para construir uma narrativa nacional anti-russa capaz de “higienizar” o fascismo da OUN-B. (A esposa de Yuschenko, Katherine Chumachenko, atuou no governo Reagan e foi ex-funcionária da Heritage Foundation, claramente identificada com a direita “neoconservadora”). Quando o Parlamento Europeu condenou a proclamação de Yuschenko como uma afronta aos “valores europeus”, a afiliação ucraniana da UCCA no Congresso Mundial reagiu com indignação, acusando a UE de “reescrever a história da Ucrânia na Segunda Guerra Mundial”. Em seu site, a UCCA tentou rotular os registros históricos da colaboração de Bandera com os nazistas como “propaganda soviética”.
Após a derrubada de Yanukovich neste mês, a UCCA ajudou a organizar comícios em todas as cidades dos EUA, em apoio aos manifestantes. Quando centenas destes marchavam pelo centro de Chicago, alguns agitavam bandeiras da Ucrânia, enquanto outros orgulhosamente carregavam as bandeiras vermelhas e pretas da UPA e OUN-B. “Os EUA apoiam a Ucrânia!” eles gritavam.
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Um cheiro de cinzas no ar


Saul Leblon no sítio Carta Maior

postado em: 28/02/2014

Como parte interessada, a mídia jamais reconhecerá no fato o seu alcance: mas talvez o Brasil tenha assistido nesta 5ª feira a uma das mais duras derrotas já sofridas pelo conservadorismo desde a redemocratização.

Quem perdeu não foi a ética, a lisura na coisa pública ou a justiça, como querem os derrotados.

A resistência conservadora a uma reforma política, que ao menos dificultasse o financiamento privado das campanhas eleitorais, evidencia que a pauta subjacente ao julgamento da AP 470 tem pouco a ver com o manual das virtudes alardeadas.

O que estava em jogo era ferir de morte o campo progressista

Não apenas os seus protagonistas e lideranças.

Mas sobretudo, uma agenda de resiliência  histórica infatigável, com a qual eles seriam identificados.

Ela foi golpeada impiedosamente em 54 e renasceu com um único tiro; foi golpeada em 1960 e renasceu em 1962; foi golpeada em 1964, renasceu em 1988; foi golpeada em 1989, renasceu em 2003; foi golpeada em 2005 e renasceu em 2006, em 2010...

O  que se pretendia desta vez, repita-se, não era exemplar cabeças coroadas do petismo, mas um propósito algo difuso, e todavia persistente, de colocar a luta pelo desenvolvimento como uma responsabilidade intransferível da democracia e do Estado brasileiro.

A derrota conservadora é  superlativa nesse sentido, a exemplo dos recursos por ela mobilizados --sabidamente nada  modestos.

Seu dispositivo midiático lidera a lista dos mais esfarrapados egressos da refrega histórica.

Se os bonitos manuais de redação valessem, o  desfecho da AP 470  obrigaria a mídia ‘isenta’ a regurgitar as florestas inteiras de celulose que consumiu com o objetivo de espetar no PT o epíteto eleitoral de ‘quadrilha’.

Demandaria uma lavagem de autocrítica.

Que ela não fará.

Tampouco reconhecerá que ao derrubar a acusação de quadrilha, os juízes que julgam com base nos autos desautorizariam implicitamente o uso indevido da teoria  do  domínio do fato, que amarrou toda uma narrativa largamente desprovida de provas.

Se não houve quadrilha, fica claro o propósito político prévio  de emoldurar a  cabeça  do ex-ministro José Dirceu no centro de uma bandeja eleitoral, cuja guarnição incluiria nomes ilustres do PT, arrolados ou não  na AP 470.

O banquete longamente preparado  será degustado de qualquer forma agora.
Mas fica difícil  afastar  a percepção de que o carnaval conservador saltou  direto da concentração para  a dispersão sem passar pela apoteose.

Aqui e ali, haverá quem arrote  peru nos camarotes e colunas da indignação seletiva.

O cheiro de cinzas, porém, é inconfundível e contaminará por muito tempo o ambiente político e econômico do conservadorismo.

O  que se pretendia, repita-se, não era apenas criminalizar fulano ou sicrano, mas a tentativa em curso de enfraquecer o enredo que os mercados impuseram ao país de forma estrita e abrangente no ciclo tucano dos anos 90.

Inclua-se aí a captura do Estado para sintonizar o país à modernidade de um capitalismo ancorado na subordinação irrestrita da economia, e na rendição incondicional da sociedade, à supremacia das finanças desreguladas.

O Brasil está longe de ter subvertido essa lógica.

Mas não por acaso, a cada três palavras que a ortodoxia pronuncia hoje, uma é para condenar as ameaças e tentativas de avanços nessa direção.

O jogral é conhecido: “tudo o que não é mercado é populismo; tudo o que não é mercado é corrupção; tudo o que não é mercado é inflacionário, é ineficiência, atraso e gastança”.

O eco desse martelete percorreu cada sessão do mais longo julgamento da história brasileira.

Assim como ele, a condenação da política pelas togas coléricas reverberava a contrapartida de um anátema econômico de igual veemência,  insistentemente  lembrado pelos analistas e consultores: “o Brasil não sabe crescer, o Brasil não vai crescer, o Brasil não pode crescer --a menos que retome  e conclua  as ‘reformas’”.

O eufemismo cifrado designa o assalto aos direitos trabalhistas; o desmonte das políticas sociais;  a deflagração de um novo ciclo de   privatizações e a renúncia irrestrita a políticas e tarifas de indução ao crescimento.

Não é possível equilibrar-se na posição vertical em cima de um palanque abraçado a essa agenda, que a operosa Casa das Garças turbina para Aécio --ou Campos, tanto faz.

Daí o empenho meticuloso dos punhais midiáticos em escalpelar os réus da AP 470.

Que legitimidade poderia ter um projeto alternativo de desenvolvimento identificado com uma  ‘quadrilha’ infiltrada no Estado brasileiro?

Foi essa indução que saiu  seriamente chamuscada da sessão do STF na tarde desta 5ª feira.

Os interesses econômicos e financeiros que a desfrutariam continuam vivos.

Que o diga a taxa de juro devolvida esta semana ao degrau de 10,75% , de onde a Presidenta Dilma a recebeu e do qual tentou rebaixá-la, sob  fogo cerrado da república rentista e do seu jornalismo especializado.

Sem desarmar a bomba de sucção financeira essas tentativas  tropeçarão ciclicamente  em si mesmas.

Os quase 6% que o  Estado brasileiro destina ao rentismo anualmente, na forma de juros da dívida pública, dificultam sobremaneira desarmar o círculo vicioso do endividamento, do qual eles são causa e decorrência.

É o labirinto do agiota: juro sobre juro leva a mais juro. E mais alto.

Dessa encruzilhada se esboça a disputa entre  dois projetos distintos de desenvolvimento.

A colisão entre as duas dinâmicas fica mais evidente quando a taxa de crescimento declina ou ocorrem mudanças de ciclo na economia mundial, estreitando adicionalmente a margem de manobra do Estado e das contas externas.

É o que a América Latina, ou quase toda ela, experimenta  nesse momento.

A campanha eleitoral deste ano prestaria inestimável serviço ao discernimento da sociedade se desnudasse esse conflito objetivo, subjacente à  guerra travada diante dos holofotes no julgamento da AP 470.

O conservadorismo foi derrotado. Mas não perdeu seus arsenais.

Eles só serão desarmados pela força e o consentimento  reunidos das grandes mobilizações democráticas.

As eleições de outubro poderiam funcionar como essa grande praça da apoteose.

A ver.



[ENTREVISTA] Deisy Ventura: Não existe um sentido preciso e unívoco da palavra terrorismo, como mal absoluto a ser combatido

28.02.14 - Brasil

IHU - Unisinos
Adital
"O pior é que mesmo as mais duras leis antiterrorismo fracassaram no que se refere à proteção dos civis” "A sociedade brasileira vive num fogo cruzado. À medida que a violência se naturaliza, numa espiral repressiva, a impossibilidade de diálogo se cristaliza”
"Todo regime de exceção, parcial ou total, é uma confissão de abandono da política e de paixão pelo poder”
"Sob a perspectiva do interesse público, o importante agora seria fazer com que o Direito Penal fosse cumprido com maior equidade, celeridade e eficiência”, adverte a advogada.


O polêmico Projeto de Lei 499/13, encaminhado para votação em caráter de urgência no Senado Federal, é apenas um dos seis projetos em tramitação com o objetivo de tipificar crimes de terrorismo no Brasil, informa Deisy Ventura, em entrevista à IHU On-Line.
Segundo ela, "o curioso é que a polêmica em torno das leis sobre terrorismo não ocorreu no momento da apresentação destes projetos, e sim quando alguns Senadores, como Jorge Viana e Paulo Paim, passaram a defender a tramitação do PLS 499/13 em caráter de urgência, em resposta à grande repercussão da morte de um cinegrafista, atingido por um artefato explosivo durante uma manifestação contra o aumento das tarifas de transporte coletivo, ocorrida em 06 de fevereiro último, no Rio de Janeiro”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, a professora de Direito da USP apresenta e comenta as principais propostas de lei e enfatiza que "em lugar de preencher um vazio” na legislação, tais projetos podem abrir "um rombo, mais um bolsão de estado de exceção em nosso ordenamento”. Deisy relata que, ao ler a justificativa oficial do PLS 499/13, constatou que ela "demonstra, antes de qualquer coisa, uma imensa ignorância sobre a história desta nefasta palavra. As leis antiterroristas têm sido o recurso empregado por quem controla o Estado, em geral durante lutas independentistas, separatistas ou de resistência aos regimes totalitários, para descartar definitivamente os seus opositores do campo da lei comum e da negociação. O terrorista, mais do que fora da lei, passa a ser aquele que se encontra fora do humano, por sua infâmia absoluta”. E dispara: "O que chama mais a atenção no PLS 499/13 é o crime de incitação ao terrorismo, previsto em seu artigo 5º. Nada mais é dito sobre este crime, além de ‘incitar o terrorismo: Pena – reclusão de 3 a 8 anos’”.
Na avaliação da advogada, os projetos de lei em tramitação "parecem retomar a ideia de que é melhor combater do que definir o terrorismo. A avassaladora má fama do termo obnubila o fato de que, quanto menor a precisão do tipo penal, maior a margem de discricionariedade do Estado para impor processos e sanções excepcionais”.
Deisy Ventura é mestre em Direito Comunitário e Europeu e doutora em Direito Internacional pela Universidade de Paris 1. Foi professora do Programa de Pós-Graduação em Direito na Unisinos e professora adjunta e Pró-Reitora de Assuntos Estudantis da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Atualmente é professora de Direito Internacional e Livre-Docente do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em que consiste a proposta do Projeto de Lei 499/13 de criar uma lei antiterrorismo? Que atos devem ser considerados terrorismo segundo a proposta?
Deisy Ventura - É importante esclarecer que há ao menos seis projetos em tramitação no Senado Federal com o objetivo de tipificar (grosso modo, descrever uma conduta e atribuir-lhe uma pena) o crime de terrorismo e correlatos.
Embora nunca definido pelo Direito brasileiro, o terrorismo aparece em dois dispositivos basilares da Constituição Federal de 1988: o artigo 4º, VII eleva o repúdio ao terrorismo e ao racismo à condição de princípio norteador das relações internacionais do Brasil; e o artigo 5º, XLIII faz dele um crime inafiançável e insuscetível de graça e anistia, ao lado da prática da tortura, do tráfico ilícito de entorpecentes e dos crimes hediondos. Assim, tipificar este crime supostamente supriria uma lacuna da ordem jurídica brasileira. Considerando o nível do debate, porém, em lugar de preencher um vazio, temo que abra um rombo, mais um bolsão de estado de exceção em nosso ordenamento.
A inconsistência dos novos tipos penais é flagrante: o PLS 499, apresentado em 28-11-2013 pelos Senadores Romero Jucá e Cândido Vaccarezza, define o terrorismo como "Provocar ou infundir terror ou pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade de pessoa”, punível com a reclusão de 15 a 30 anos ou, se resulta em morte, de 24 a 30 anos [1]. Contudo, o projeto não define o que é terror ou pânico generalizado, nem esclarece se eles são a finalidade ou o efeito da conduta; tampouco precisa o seu alcance ou a sua intensidade. Por outro lado, seria amplo o leque de condutas que poderiam ser consideradas, por exemplo, uma "tentativa de ofensa” à saúde das pessoas. Ademais, este projeto já conta com numerosas emendas (propostas de alteração de trechos específicos do texto) apresentadas em plenário, todas piores que o soneto.
A lei conforme o gosto do freguês
Um projeto anterior, o PLS 762/2011, do Senador Aloysio Nunes Ferreira, adota a mesma definição, com um importante acréscimo, a finalidade do crime: "por motivo ideológico, religioso, político ou de preconceito racial, étnico, homofóbico ou xenófobo”. A expressão motivo ideológico causa arrepios. A mesma redação encontra-se no PLS 728/2011, de 09-12-2011, que foi apresentado pelos Senadores Marcelo Crivella, Ana Amélia Lemos e Walter Pinheiro com o objetivo de "incrementar a segurança da Copa das Confederações FIFA de 2013 e da Copa do Mundo de Futebol de 2014, além de prever o incidente de celeridade processual e medidas cautelares específicas, bem como disciplinar o direito de greve no período que antecede e durante a realização dos eventos”. Explicitamente casuísta, este PLS, diferentemente dos demais, prevê o aumento de um terço das penas se o crime for praticado "contra integrante de delegação, árbitro, voluntário ou autoridade pública ou esportiva, nacional ou estrangeira” (art. 4, I) ou "em estádio de futebol no dia da realização de partidas da Copa das Confederações 2013 e da Copa do Mundo de Futebol” (III). É a lei conforme "o gosto do freguês”.
Mas há definições ainda piores: o PLS 588/2011, da lavra do hoje cassado Demóstenes Torres, cuja justificativa pena para alcançar meia página, inclui na definição do terrorismo a "ação psicossocial” capaz de causar "medo, desespero, intimidação da população”, com o intuito de "abalar a paz social”. Difícil imaginar de que paz social tratava o ex-Senador. No PLS 707/2011, o Senador Blairo Maggi, conhecido como o "rei da soja” — autor da lapidar frase "esse negócio de floresta não tem o menor futuro” — amplia os possíveis motivos do crime, incluindo entre outros o "separatismo”, e prevê entre as condutas que podem ser consideradas terrorismo o "apoderar-se”, mesmo que de modo parcial ou temporário, de "instalações públicas”.
IHU On-Line - O que essa proposta de Lei antiterrorismo demonstra sobre o atual momento político brasileiro?
Deisy Ventura - O curioso é que a polêmica em torno das leis sobre terrorismo não ocorreu no momento da apresentação destes projetos, e sim quando alguns Senadores, como Jorge Viana e Paulo Paim, passaram a defender a tramitação do PLS 499/13 em caráter de urgência, em resposta à grande repercussão da morte de um cinegrafista, atingido por um artefato explosivo durante uma manifestação contra o aumento das tarifas de transporte coletivo, ocorrida em 06 de fevereiro último, no Rio de Janeiro.
Esta vinculação entre a aprovação sôfrega de uma lei sobre o terrorismo e as manifestações populares que floresceram no Brasil a partir de junho de 2013 mereceu o repúdio de lideranças sociais e de alguns órgãos de imprensa. Na capa do jornal Correio Braziliense, por exemplo, o PLS 499 foi diretamente associado ao Ato Institucional nº 5, o famigerado AI5.
Isto fez com que o Senador Romero Jucá apresentasse, em 18 de fevereiro último, uma nova proposição, o PLS 44, semelhante ao PLS 499/13, mas com importante excludente de criminalidade: "Não constitui crime de terrorismo a conduta individual ou coletiva de pessoas, movimentos sociais ou sindicatos, movidos por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando contestar, criticar, protestar, apoiar com o objetivo de defender ou buscar direitos, garantias e liberdades constitucionais” (art. 3º). Em outras palavras, não seria terrorista a conduta em prol da ordem jurídica vigente (defender ou buscar direitos, garantias ou liberdades constitucionais) e, portanto, que se opera nos limites desta ordem. Desnecessário mencionar o amplo leque de interpretações que tal norma suscitaria.
IHU On-Line - Há declarações de que a proposta de lei retoma iniciativas repressivas do período militar. Concorda?
Deisy Ventura - Concordo. Contrariando sua finalidade aparente, os projetos em apreço parecem retomar a ideia de que é melhor combater do que definir o terrorismo. A avassaladora má fama do termo obnubila o fato de que quanto menor a precisão do tipo penal, maior a margem de discricionariedade do Estado para impor processos e sanções excepcionais.
Por exemplo, durante o regime militar (1964-1985), o Decreto-Lei nº 898/1969 determinou que o sempre indefinido ato de terrorismo, quando resultasse em morte, seria punido com "prisão perpétua, em grau mínimo, e morte, em grau máximo” (art. 28).
A ainda vigente Lei de Segurança Nacional (7.170/1983), embora com penas mais modestas, estipula as duas finalidades que tornariam criminosa a prática de condutas como "devastar”, "depredar” e "provocar explosão”, ou de "atos de terrorismo”. Seriam elas o "inconformismo político” ou "a obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas”. Aliás, a adorável expressão "inconformismo político-social” aparece já na primeira lei de segurança nacional do regime militar, o Decreto-Lei nº 314/1967, ao lado de outro florão do léxico autoritário, o "facciosismo”. O fato é que, até hoje, muitos governantes não superaram a dificuldade de lidar com o inconformado ou o que toma partido, se não for o deles.
Sob esta ótica, nada melhor do que um inconformado violento. Gosto muito de um livro de Mireille Delmas-Marty que analisa a repercussão "desumanizante” dos atentados de 11 de setembro de 2001 sobre o direito penal [2]. Ela diz que o episódio parece ter liberado as autoridades, política, simbólica e juridicamente, da obrigação de respeitar os limites próprios do Estado de Direito. E alerta para o risco de jogar fora a democracia sob o pretexto de defendê-la: "reduzindo as liberdades, o Estado se injeta, numa verdadeira estratégia de autoimunização, uma parte do mal, assumindo o risco de uma violência que se alimenta de outras e termina por contaminar todo o sistema”.

IHU On-Line - Como entender essa proposta de lei nos dias de hoje?
Deisy Ventura - Ao ler a justificativa oficial do PLS 499/13, anexa à proposição, constatei que ela demonstra, antes de qualquer coisa, uma imensa ignorância sobre a história desta nefasta palavra. As leis antiterroristas têm sido o recurso empregado por quem controla o Estado, em geral durante lutas independentistas, separatistas ou de resistência aos regimes totalitários, para descartar definitivamente os seus opositores do campo da lei comum e da negociação. O terrorista, mais do que fora da lei, passa a ser aquele que se encontra fora do humano, por sua infâmia absoluta.
Tive a felicidade de assistir, em 2010, a montagem que Stanislas Nordey fez de "Os justos”, peça em que Albert Camus discute o indiscutível: o quanto de violência a luta por uma causa justifica? No início da trama, na Rússia de 1905, a presença inesperada de duas crianças compromete a realização de um atentado contra a família do czar, por hesitação de um militante. Esta preocupação com a morte de inocentes nunca abandonou Camus: num bate-boca em Estocolmo, em 1957, ele disse a um estudante argelino que cobrava seu apoio à Frente de Libertação Nacional algo como: "enquanto estamos falando, bombas são jogadas nos bondes da Argélia. Minha mãe pode estar em um deles. Se isto é justiça, eu prefiro minha mãe”. Mas ao tratar da Argélia, sua terra natal, Camus reconhecia a espiral de violência: "cada repressão, ponderada ou demente, cada tortura policial e cada julgamento ilegal acentuaram o desespero e a violência nos militantes” [3].
Se pensarmos que a grande infâmia do terrorista é crer que uma causa justificaria o sacrifício da vida humana ou do patrimônio, falar de terrorismo no Brasil seria, antes de qualquer coisa, evocar o terrorismo de Estado, do passado e atual. A leitura do Anuário Estatístico do Fórum Brasileiro de Segurança Pública — divulgado em novembro de 2013, que compila dados oficiais — é bastante instrutiva para quem acredita que o problema da violência no Brasil é a estratégia "black bloc” ou o pesadelo da Al Qaeda: em média, "ao menos cinco pessoas morrem vítimas da intervenção policial no Brasil todos os dias, ou seja, ao menos 1.890 vidas foram tiradas pela ação das polícias civis e militares em situações de confronto [no ano de 2012]”. Um dos campeões mundiais em mortes por armas de fogo, o Brasil ostenta números que superam os de conflitos armados em diversas regiões do planeta: mais de 50 mil homicídios em 2012. Tem a quarta maior população carcerária do mundo, perdendo apenas para China, Estados Unidos e Rússia.
A sociedade brasileira vive num fogo cruzado. À medida que a violência se naturaliza, numa espiral repressiva, a impossibilidade de diálogo se cristaliza. Todo regime de exceção, parcial ou total, é uma confissão de abandono da política e de paixão pelo poder.
IHU On-Line - Que ações de fato se enquadram em atos de terrorismo?
Deisy Ventura - Como já disse, o Direito brasileiro não prevê tais ações. Tampouco o Direito internacional chegou a uma definição geral e abstrata do terrorismo. Mas alguns Estados o fazem.
Para os Estados Unidos, por exemplo, o terrorismo é o uso premeditado da violência por motivos políticos, contra não combatentes, por grupos clandestinos ou subnacionais. Este conceito é autoexplicativo: a ação militar norte-americana em diversos países do mundo seria facilmente considerada terrorismo de Estado caso adotássemos, por exemplo, a definição do PLS 499. A famosa "guerra contra o terror” conduzida pelo Presidente George W. Bush foi, na verdade, fachada para incontáveis intervenções americanas em territórios estrangeiros, com os mais variados fins. Afirmou-se inclusive a tese da proporcionalidade na interpretação do princípio da dignidade humana: quanto mais grave a acusação, menor a dignidade do acusado. Um belo livro do cartunista brasileiro Angeli, intitulado O lixo da história [4], retoma com genialidade as imagens da "era Bush”.
O pior é que mesmo as mais duras leis antiterrorismo fracassaram no que se refere à proteção dos civis. Ao contrário, alimentaram a violência, como foi o caso do Exército Republicano Irlandês - IRA e do País Basco e Liberdade - ETA. O "terrorista” de hoje só se torna o possível interlocutor político de amanhã quando ele é reintegrado à esfera da lei comum, ao campo da negociação possível. Mireille Delmas-Marty e Henry Laurens ensinam que esta foi a regra nas lutas pela libertação nacional que hoje são, quase consensualmente, reconhecidas como legítimas [5].
Mas nada justifica que o Brasil venha aderir de forma acrítica à parcialíssima visão de segurança norte-americana. Muitas vezes, o terrorismo foi referido como "arma dos fracos”, em alusão ao uso da violência por quem foi privado de espaço efetivo na disputa institucionalizada pelo poder. Foi o caso do "terrorista” Nelson Mandela, encarcerado por quase três décadas, hoje beatificado pelos meios de comunicação como grande pacifista. Foi o caso de numerosos movimentos de libertação nacional no processo de descolonização. Na atualidade recente, há o exemplo da Irmandade Muçulmana, que passou a ser oficialmente designada pelo Egito, em 25-12-2013, como organização "terrorista”, embora o partido que a representa tenha recebido mais de 13 milhões de votos (51,73% do total) nas eleições presidenciais de 2012. É evidente que os militares egípcios, que depuseram o presidente Mohamed Morsi, valem-se da lei antiterrorismo para impedir que a Irmandade Muçulmana volte a conquistar o poder pela via institucional, e para desqualificá-la diante da comunidade internacional.
Por tudo isto, não existe um sentido preciso e unívoco da palavra terrorismo, como mal absoluto a ser combatido. Ao sabor do tempo, do lugar e do contexto, pelas mais variadas razões, legítimas ou inaceitáveis, seres humanos são levados a ou optam por recorrer a ações consideradas ilegais por uma ordem jurídica. Só se pode opinar caso a caso. Para chegar a uma definição geral e abstrata do terrorismo seria preciso acreditar que a ordem jurídica encarregada de determinar o que é legal ou ilegal está acima de qualquer crítica. Isto equivaleria a renunciar, por exemplo, à legítima defesa em relação ao status quo. Supondo que um dia eu pudesse acreditar em algo assim, certamente não seria hoje. Por isto, esta palavra merece ser usada entre aspas, ou no plural, terrorismos.
IHU On-Line - Como o Direito internacional trata o termo terrorista?
Deisy Ventura - As convenções internacionais referem-se a atos criminosos específicos, sem, contudo, oferecer uma definição geral de terrorismo. Esta característica costuma ser denominada "enfoque setorial”, como, por exemplo, o apoderamento ilícito de aeronaves (convenção de 1970); crimes contra agentes diplomáticos (1973); tomada de reféns (1979); proteção do material nuclear (1980); segurança da aviação civil e da navegação marítima (1988); ou ainda o financiamento do terrorismo (1999). Assim, a preocupação do Direito internacional está voltada, sobretudo, ao fomento da cooperação internacional para persecução aos crimes, e muito especialmente ao compartilhamento de informações.
Neste particular, há o problema das listas, elaboradas por países ou organizações, de pessoas ou grupos que são considerados terroristas. Por tudo que já destaquei, é preciso ter um aguçado senso crítico em relação aos critérios utilizados para definir quem é terrorista. É comum, por exemplo, encontrarmos nestas listas antigos aliados dos regimes ocidentais, que hoje não servem mais.
Isto não significa, de modo algum, conivência com a prática de crimes ou com a impunidade. O direito internacional, por meio do Estatuto de Roma, de 1998, tipifica os crimes contra a humanidade e os crimes de guerra, e cria uma jurisdição internacional para processá-los, de caráter subsidiário às jurisdições nacionais. Esta deve ser a principal preocupação do direito penal internacional. Caso prevaleça uma visão internacionalista baseada nos direitos humanos, a traiçoeira expressão terrorismo está fadada à desaparição, e o combate aos crimes contra a humanidade e de guerra será cada vez mais forte.
IHU On-Line - A proposta de lei está recebendo muitas críticas. Quais são os riscos caso essa lei seja aprovada?
Deisy Ventura - O que chama mais a atenção no PLS 499/13 é o crime de incitação ao terrorismo, previsto em seu artigo 5º. Nada mais é dito sobre este crime, além de "incitar o terrorismo: Pena – reclusão de 3 a 8 anos”. Na versão do PLS 44/14, esta pena é aumentada em um terço se o crime for praticado por meio da internet. São também crimes o financiamento de atividades "terroristas” e o dar abrigo à pessoa que "esteja por praticar” ato "terrorista”. Todos estes crimes são inafiançáveis e insuscetíveis de anistia, graça ou indulto. Ou seja, a depender do que se considera terror ou pânico generalizado em um dado momento, expressar uma opinião crítica numa rede social, por exemplo, poderia ser enquadrado como incitação ao terrorismo. Assim, uma lei deste tipo compreende um aparato de repressão completo e criminaliza inclusive a solidariedade.
IHU On-Line - A proposta de lei é uma tentativa de conter possíveis manifestações na Copa?
Deisy Ventura - Se aqueles que defendem uma lei antiterror pretendem forjar uma "paz social” para consumo durante a Copa, seria um preço muito alto a pagar por uma bagatela. Fazer com que o Brasil não pareça violento aos olhos dos estrangeiros é tão possível quanto enxugar o mar.
No plano político, já houve a decisão de reprimir com vigor as manifestações populares, o que inclui bater, prender, fichar e processar manifestantes, mas também acuar jornalistas e advogados. Ao fazê-lo, as polícias têm incrementado seu largo histórico de violações de direitos humanos. E para isto elas não precisam de leis antiterrorismo. Do ponto de vista da propaganda política, as expressões "vândalo” e "black bloc” já têm cumprido seu papel de desqualificação do "adversário”, repetidas à exaustão. Vejo com grande tristeza o desperdício do potencial político desta geração que vai às ruas, que deveríamos conhecer e com quem devemos dialogar. Mas, voltando a uma expressão de Camus, aqui "a responsabilidade coletiva erigiu-se em princípio de repressão”.
Objetivamente, a desproporção entre os efetivos policiais e as poucas dezenas de pessoas que se utilizam da violência durante manifestações populares é patente. Digamos que há um movimento amplo de sujeição da sociedade brasileira aos interesses do mercado, disfarçados de interesse público (ou, no caso da Copa, nem isto), no qual pontualmente se inserem alguns destes projetos de lei. O maior problema é que projetos como o PLS 499 elevam as possibilidades de repressão pelo Estado a um patamar que ultrapassa largamente este momento.
IHU On-Line - Há necessidade da criação desta lei? Quais são as leis que já dão conta de ações que o Senado pretende tipificar como terrorismo?
Deisy Ventura - Todas as condutas que resultam em lesão ou ameaça de lesão à vida, à integridade física ou ao patrimônio, tanto público como privado, já são crimes no Brasil, especialmente por força do Código Penal. Sob a perspectiva do interesse público, o importante agora seria fazer com que o Direito Penal fosse cumprido com maior equidade, celeridade e eficiência. Infelizmente, o desempenho do nosso país em matéria de cumprimento das leis é pífio, em particular daquelas que concernem à efetividade dos direitos fundamentais.
NOTAS
[1] As penas seriam aumentadas de um terço se a conduta for praticada com emprego de explosivo, fogo, arma química, biológica ou radioativa, por meio informático ou outro meio capaz de causar danos ou promover destruição em massa (I); em meio de transporte coletivo ou sob proteção internacional (II); por agente público, civil ou militar, ou pessoa que aja em nome do Estado (III); em locais com grande aglomeração de pessoas (IV); contra o Presidente e o Vice-Presidente da República, o Presidente da Câmara dos Deputados, o Presidente do Senado Federal ou o Presidente do Supremo Tribunal Federal e o Procurador-Geral da República (V); contra Chefe de Estado ou Chefe de Governo estrangeiro, agente diplomático ou consular de Estado estrangeiro ou representante de organização internacional da qual o Brasil faça parte (VI). (Nota da entrevistada)
[2] Liberdades e segurança num mundo perigoso. Paris: Seuil, 2010. (Nota da entrevistada)
[3] Réflexions sur le terrorisme, Paris: N.Philippe, 2002.
[4] São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
[5] Terrorismes – Histoires et droit, Paris: CNRS, 2010.

O PIB e o inexorável peso dos fatos

Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa: do Blog do Miro
 


É manchete nos principais jornais de sexta-feira (28/2) o resultado da economia brasileira no ano de 2013. O tom de espanto domina os títulos das reportagens e das análises dos economistas credenciados pela imprensa. O Produto Interno Bruto cresceu 2,3%, contrariando o canto fúnebre entoado incessantemente pela mídia tradicional até o dia anterior. O discurso muda subitamente: agora, diz-se que “uma surpresa favorável estancou a piora das expectativas”.

As edições da véspera de carnaval devem ser guardadas pelos analistas da comunicação jornalística como um caso a ser estudado em futuras pesquisas. Trata-se da mais deslavada demonstração de irresponsabilidade, para não dizer manipulação criminosa, no exercício dessa que já foi considerada uma atividade luminar da vida moderna.

Ao ver desmentidas pelos números suas próprias adivinhações, a imprensa usa o contorcionismo das metáforas para dizer que, agora, as expectativas catastrofistas não têm sentido. Ora, mas quem foi que criou essas expectativas, se não a própria imprensa, ao dar abrigo e destaque para as piores previsões disponíveis?

Com exceção de uma minoria de especialistas, que passaram as últimas semanas fazendo penosos malabarismos verbais para não cair na corrente do apocalipse, o conteúdo dos jornais tem induzido os operadores da economia a um estado mental depressivo, que afeta principalmente o setor industrial, mais suscetível ao clima de pessimismo. Alguns textos acusam o governo atual de haver insuflado no mercado um otimismo exagerado, há três anos, ao projetar taxas de crescimento anuais em torno de 4%.

Acontece que, desde então, a imprensa tem trabalhado no sentido contrário, produzindo um clima que induz a estratégias cautelosas por parte dos investidores. Ainda assim, note-se, o nível de investimento cresceu 6,3% em 2013, a maior alta desde 2010. O gráfico apresentado pelo Estado de S. Paulo anota, timidamente, que os investimentos devem crescer mais em 2014, impulsionados pelas obras da Copa do Mundo.

Manipulação e malabarismo
No amplo espectro das causas que compõem os fenômenos complexos, não se pode descartar o efeito do pessimismo da imprensa sobre escolhas de empresários e executivos mais conservadores. Observe-se que, progressivamente, a predominância de opiniões negativas sobre a economia brasileira se tornou tão hegemônica que alguns autores passaram a usar e abusar de figuras de linguagem para se dirigir a seus leitores, abrindo mão do vocabulário econômico específico.

Interessante notar também que um dos destaques das edições de sexta-feira (28) é a frase de uma jovem economista muito apreciada pelos jornais, que costuma usar referências literárias para ilustrar suas análises. Em declaração no Estado de S. Paulo, ela afirma que o desempenho do PIB “vai gerar um choque de realidade sobre a economia do País. O pessimismo não se traduz em recessão ou queda do PIB”, observou. O leitor atento vai pesquisar suas manifestações anteriores e constata que a economista tem sido uma das mais agressivas ativistas do pessimismo, useira contumaz de ironias.

Note-se também que, mesmo diante da realidade que contraria tudo que vinha publicando, a imprensa se esforça para diminuir o impacto dos fatos sobre suas previsões alarmistas. Numa página inteira em que analisa sinais de mudança no modelo brasileiro de crescimento, a Folha de S. Paulo apresenta na edição de sexta-feira um ranking das economias que mais cresceram, lançando mão de um artifício primário para minimizar a importância do desempenho do Brasil: em dezembro, quando noticiaram estudos sobre mudanças na economia dos Estados Unidos, os jornais dividiram os países em dois blocos – os mais vulneráveis e os menos vulneráveis.

E qual o critério adotado agora pela Folha, para classificar o desempenho dessas mesmas economias em 2013? Divide os países em três blocos, colocando o Brasil no bloco intermediário.

Se optasse pelo mesmo critério usado para destacar a análise pessimista, o jornal teria feito um quadro com dois blocos, e o Brasil seria apresentado entre os quatro países que mais cresceram, junto com China, Indonésia e Coréia do Sul.

São manobras como essa, inspiradas claramente num viés ideológico e no interesse político, que afetam a credibilidade da imprensa.

Ano quatorze. Um Brasil alvo de cobiças e sabotagens.

Mauro Santayana, na Rede Brasil Atual

O Brasil entra em temporada de Copa e eleições sob a cobiça de blocos, nações e empresas do mundo. E tem como adversários internos o complexo de vira-lata de setores da imprensa e da sociedade
por Mauro Santayana publicado 16/02/2014 13:05
Agência Brasil

Desde a criação do calendário, pelos sumérios, há 4 mil anos, o desenrolar dos acontecimentos deixou de depender exclusivamente do acaso, para incluir feriados e eventos religiosos e políticos que passaram a datar e servir de palco para a história. O Brasil, neste 14º ano do milênio, contará com dois grandes marcos desse tipo: a Copa do Mundo e as eleições. Eles contribuirão para chamar ainda mais a atenção da população mundial para um país que já é importante, por si só, globalmente. Com todos os nossos problemas, e o complexo de vira-lata de amplos setores da sociedade, somos o quinto maior país em território e população, o segundo maior exportador de alimentos, a sétima economia e o terceiro maior credor individual externo dos Estados Unidos.
Tudo isso obriga não apenas a que o Brasil não possa ser ­ignorado, mas faz, também, com que nosso país seja cobiçado, e esteja sendo ferrenhamente disputado, nos mais variados aspectos da economia e da geopolítica, pelos principais blocos, nações e empresas do mundo. O crescimento da dimensão política e econômica da Nação, nestes primeiros anos do século 21, transformou o Brasil na bola da vez de uma permanente batalha, entre espoliação e independência, entre o modelo dos últimos 200 anos e a busca de caminhos alternativos para a construção do desenvolvimento econômico e social da humanidade. As antigas potências coloniais e neocoloniais, que lutam para manter nosso país, ou amplos setores dele, sob sua influência, sabem que esse embate se dará, na economia, na política, na comunicação, e têm plena consciência do que está em jogo.
Na economia, é de se esperar que elas reforcem, nos próximos meses – sempre com a dedicada ajuda da grande mídia –, o discurso de esvaziamento da importância econômica do Mercosul; de valorização de mitos neoliberais como o da Aliança do Pacífico; de fragilidade dos fundamentos de nossa macroeconomia; da existência de um suposto protecionismo brasileiro, teoricamente responsável pela diminuição de nosso percentual de participação no comércio mundial – para o qual só haveria um remédio, o de estabelecer rapidamente acordos de livre comércio com os países mais ricos.
Assim, enquanto setores da imprensa nacional e internacional distraem determinadas parcelas da opinião publica, com alertas sobre a Argentina de Cristina Kirchner, a Venezuela de Nicolás Maduro e a “bolivarianização” do Brasil e do Mercosul, os Estados Unidos e a Europa aproveitam para avançar sobre nosso mercado interno, aumentando, como fizeram em 2013, seus superávits em 50% e 1.000%, respectivamente.
Às potencias ocidentais e aos seus prepostos não interessa divulgar que elasdiminuíram quase que na mesma proporção suas importações de produtos brasileiros no ano passado. Como não é conveniente ressaltar, também, o fato de que, no comércio com países “bolivarianos”, como a Venezuela e a Argentina, tivemos um superávit somado de mais de US$ 10 bilhões em 2013, sem o qual teríamos tido um enorme déficit comercial.
O mesmo esforço, de distorção e manipulação, continuará ocorrendo, neste ano, com a “glamourização” da Aliança do Pacífico, pseudo-organização fomentada pelo México com a ajuda de Estados Unidos e Espanha, como a última limonada do deserto em termos de associação comercial. A situação real da AP é tão boa que seu maior expoente – justamente o país de Zapata –teve crescimento de 1,2% no ano passado, menos da metade dos 2,5% estimados, no mesmo período, para o Brasil.
Obedecendo à mesma estratégia, os meios de comunicação europeus e norte-americanos, secundados pela mídia conservadora brasileira e latino-americana, subirão o tom de sua campanha contra os Brics, aproveitando momento em que o Brasil ocupa a presidência de turno, e organiza, como anfitrião, a cúpula que reunirá em junho, em Brasília, os lideres de Brasil, Índia, China e África do Sul.
Naturalmente, como ocorre com o nosso comércio com países como a Venezuela, a grande mídia devera ocultar ou relativizar a informação de que, nos últimos 12 meses, além do Mercosul, foi também para a China, e não para os países ocidentais, que aumentamos fortemente nossas exportações, em 10,4%, e nosso superávit, para quase US$ 9 bilhões.
Considerando-se o que estão ganhando por aqui, é natural que aumentem as pressões favoráveis a uma rápida assinatura de um acordo comercial entre o Brasil – com ou sem Mercosul – e a União Europeia, o que abriria as portas para futuro entendimento desse tipo com os próprios Estados Unidos.
Essa é uma hipótese que o Brasil terá de analisar sem pressa e com todo o cuidado. Somadas as remessas de lucro, estimadas em US$ 24 bilhões em 2013, e o déficit de US$ 26 bilhões no comércio exterior, apenas com a Europa e os Estados Unidos, já estamos contribuindo com uma sangria de meia centena de bilhões de dólares por ano para ajudar as potências ocidentais a enfrentar a crise em que se encontram. Se compararmos esses US$ 50 bilhões com um ganho quase equivalente obtido pelo Brasil no comércio com países emergentes – principalmente América Latina, Caribe, Brics e Mercosul – fica fácil perceber quem está nos espoliando, e com que tipo de parceiros é interessante nos associarmos, prioritariamente, no futuro.
Como está ficando difícil para quem não abdica de continuar explorando, do jeito que puder, nossos recursos e mercado, colocar no poder governos de direita e assumidamente alinhados com seus interesses, o objetivo, em 2014, continuará sendo sabotar institucionalmente o Brasil, mesmo que ele esteja proporcionando extraordinários ganhos.
A estratégia, nesse caso, passa não apenas pelo desmantelamento da imagem da nação do ponto de vista econômico, mas também pela promoção do caos, para dificultar a governabilidade, e colocar em questão, dentro e fora de território brasileiro, nossa capacidade de gestão e de realização. É essa linha de ação que alimenta a tese de que não estamos preparados para organizar grande eventos, como a Copa e as Olimpíadas, mesmo que, para fazer a omelete, quebrem-se alguns ovos, prejudicando também a imagem e a situação político-administrativa de estados e municípios governados pela oposição também envolvidos com a Copa.
Não será de estranhar, portanto, se houver, nos próximos meses, infiltração, aproveitamento ou criação de novos “movimentos”, passíveis de se espraiar para as ruas, e eventuais ações voltadas para a intimidação do público turístico que nos visitará este ano, como a sabotagem dos sistemas de transporte e de hospedagem, o cerco a estádios, incêndios e fechamentos de ruas etc.
A tudo isso se soma a percepção, pelo cidadão comum, da ausência de um debate político de melhor nível, que possa levar à discussão de propostas para a formatação de um novo projeto nacional. Até que ponto isso poderá influenciar a posição do eleitorado? O governo tem realizado avanços, mas decide cada vez mais sob pressão das circunstâncias, dos meios de comunicação, do Congresso, da aproximação das eleições e de uma base aliada fragmentada, mais preocupada com seus próprios interesses do que com a situação do pais.
E a criminalização da política – tema preferencial da grande mídia – ajuda a distorcer ainda mais esse quadro, aos olhos do eleitor, nivelando todos os homens públicos por baixo e facilitando o trabalho de uma minoria radical, cada vez mais atuante­, que odeia a democracia e sonha com a volta da ditadura e a derrocada do Estado de Direito.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Brasil, Estados Unidos e o hemisfério ocidental (2)

      José Luís Fiori no Carta Maior

  



“A new form of nationalism may emerge, seeking national or regional identity by confronting the United States. In its deepest sense, the challenge of Western Hemisphere policy for the United States is whether it can help bring about the world envisioned by Free Trade Area of the Americas, or whether the Western Hemisphere, for the first time in its history, will break up into competing blocs; whether democracy and free markets will remain the dominant institutions or whether there is a gradual relapse into populist authoritarianism.”
      
H. Kissinger, 2001, Does America Need a Foreign Policy,  Simon&Schuster, New York, p: 84


Em grandes linhas, foi a visão estratégica de Nicholas Spykman [1], formulada na década de 1940, que orientou a política externa dos EUA, para a América do Sul - democrata e republicana -  durante toda a segunda metade do século XX. Nesse período, só Henry Kissinger teve -  dentro dos EUA -  uma visão geopolítica do mundo tão ampla e inovadora, mas apesar disso, ele não mudou uma vírgula, com relação à visão hemisférica de Spykman. Com a diferença, que Kissinger foi também um executivo,  e ocupou cargos de importância crescente, dentro das administrações republicanas, a partir do primeiro governo de Dwight Eisenhower, em 1953,  até o final das administrações de Richard Nixon e  Gerald Ford, de quem foi Conselheiro de Segurança, e Secretario de Estado, respectivamente.

Nesse tempo, participou de conjunturas e decisões  internacionais que o transformaram numa das figuras mais importantes da política externa norte-americana,  da segunda metade do século XX.  Sobretudo durante as administrações de Nixon e Ford, quando deu uma contribuição decisiva para a  formulação da nova estratégia dos EUA, de resposta à crise econômica mundial dos anos 70,  e à derrota americana no Vietnã, em 1973.  Ele  participou diretamente das negociações de paz, no Vietnã, que levaram à assinatura dos Acordos de Paris, em 1973; e das negociações secretas com Chou en Lai e Mão Tse Tung , em 1971 e 1972, que levaram à reaproximação dos Estados Unidos com a China, e a reconfiguração completa da geopolítica mundial, antes e depois do fim da Guerra Fria.

Mas ao mesmo tempo, Kissinger tomou várias decisões “sangrentas”, que também foram cruciais, como foi o caso da ordem de bombardeio aéreo do Camboja e do Laos, sem a autorização do Congresso Americano, em 1969;  do apoio à guerra do Paquistão com a Índia, no território atual de Bangladeshi, em 1971; do apoio e financiamento ilegal da invasão do Chipre, pela Turquia, em 1974;  do apoio à invasão sul-africana de Angola, em 1975; e finalmente, também em 1975, do apoio à invasão do Timor Leste, pela Indonésia,  que se transformou numa ocupação de 24 anos, e custou 200 mil vidas.

Sobre a América do Sul, entretanto, Henry Kissinger inovou muito pouco, com relação à visão de Spykman, sobre o potencial de ameaça para os EUA,  dos países do Cone Sul. Já haviam passado três décadas da publicação da sua obra clássica, “America´s Strategy in World Politics”, em 1942,  mas Kissinger seguia considerando inaceitável o surgimento de um poder hemisférico alternativo nessa região, e ainda mais, se fosse da parte de um governo de esquerda, ou comunista. Razão pela qual, apoiou e sustentou os violentos golpes militares [2] que derrubaram os governos eleitos da Bolívia, em 1971, do Uruguai e do Chile, em 1973, e da Argentina, em 1976. E existem evidencias inapeláveis de que também teve injunção na  Operação Condor [3], que integrou os serviços de inteligência das Forças Armadas da Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, para seqüestrar, torturar e assassinar personalidades políticas de oposição, nesses países.    

Nas décadas de 80 e 90, Henry Kissinger afastou-se da diplomacia direta, mas manteve uma influência pessoal e intelectual muito grande dentro do establishment  americano,  e entre as elites conservadoras sul-americanas. Em  2001 - uma década depois do fim da Guerra Fria e da “ameaça comunista” -  Kissinger publicou um livro [4] que marcou época, discutindo  o futuro geopolítico do mundo, e sintetizando os novos consensos da politica externa dos EUA, para o século XXI.  Chama atenção, de novo, nesse livro, sua posição com relação à América do Sul: para Kissinger, o continente sul-americano  segue sendo -  no novo século -  uma “zona de influência”  onde os EUA não podem admitir nenhum tipo de contestação à sua supremacia estratégica e econômica. Da mesma forma que no século anterior,  só que agora, a grande ameaça à supremacia americana já não vem  do comunismo, vem do “populismo autoritário”,  e do “nacionalismo” dos governos que rejeitam as propostas  norte-americanas de integração econômica,  do tipo ALCA, na década de 90, e do tipo Aliança do Pacífico, nos anos mais recentes.  Ou seja, desse ponto de vista dominante nos EUA, nesse momento, todos os governos da América do Sul representariam uma ameaça aos interesses norte-americanos, que deve ser contida e derrotada, com exceção da  Colômbia,  do Peru, e do Chile.

NOTAS

[1] J.L.Fiori, “Brasil, EUA e o Hemisfério Ocidental ” (1), Valor Econômico, 29/01/2014

[2] Na França, Henry Kissinger foi chamado a depor, pelo juiz Roger Lê Loire, no processo sobre a morte de cidadão franceses na Operação Condor, e sob a ditadura militar chilena. O mesmo ocorrendo na Espanha, com a investigação do juiz Juan Guzman, sobre a morte do jornalista americano Charles Horman, sob a ditadura chilena. E também na Argentina, onde Kissinger foi investigado  pelo juiz Rodolfo Canicoba, por envolvimento na Operação Condor, assim como em Washington , onde existe um processo na corte federal com acusação, contra Kissinger, de haver dado a ordem  para o assassinato do Gal Schneider, Comandante em Chefa das Forças Armadas Chilenas, em 1970.

[3] Vide Chistopher Hitchens, The Trial of Henry Kissinger(2003);  e também a resenha de Kenneth Maxwelll, do livro de Peter Kornbluh,  The Pinochet file: a Desclassified Dossier on Atrocity and Accountability, publicado na Revista Foreign Affairs, de Dezembro de 2003, sobre as relações de Kissinger com o regime de Augusto Pinochet, em particular com o assassinato do diplomata chileno Orlando Letelier, em Washington, 1976.

[4] H. Kissinger, 2001, Does America Need a Foreign Policy,  Simon&Schuster, New York


Dowbor: Quem paga a campanha do candidato privatiza o recurso público



Por Ladislau Dowbor*, na "Carta Maior"

"Podemos começar com um exemplo prático. A Friboi é da JBS, o maior grupo mundial na área de carne. O pesquisador Alceu Castilho constata: “Existe uma bancada da Friboi no Congresso, com 41 deputados federais eleitos e 7 senadores. Desses 41 deputados financiados pela empresa, apenas um, o gaúcho Vieira da Cunha, votou contra as modificações no Código Florestal. O próprio relator do código, Paulo Piau, recebeu R$ 1,25 milhão de empresas agropecuárias, sendo que o total de doações para a sua campanha foi de R$ 2,3 milhões. Então temos algumas questões. Por que a Friboi patrocinou essas campanhas? Para que eles votassem contra os interesses da empresa? É evidente que a Friboi é a favor das mudanças no Código Florestal. A plantação de soja empurra os rebanhos de gado para o Norte, para a Amazônia, e a Friboi tem muito interesse nisso. Será que é mera coincidência que somente um entre 41 deputados financiados pela empresa votou contra o novo código?”(1)

No Brasil, esse sistema foi legalizado através da lei de 1997 [FHC/PSDB] que libera o financiamento das campanhas por interesses privados (2). Podem contribuir com até 2% do patrimônio, o que representa muito dinheiro. Os professores Wagner Pralon Mancuso e Bruno Speck, respectivamente da USP e da Unicamp, estudaram os impactos. “Os recursos empresariais ocupam o primeiro lugar entre as fontes de financiamento de campanhas eleitorais brasileiras. Em 2010, por exemplo, corresponderam a 74,4%, mais de R$ 2 bilhões, de todo o dinheiro aplicado nas eleições (dados do Tribunal Superior Eleitoral)(3).


A empresa que financia um candidato – um assento de deputado federal tipicamente custa 2,5 milhões de reais – tem interesses. Esses interesses se manifestam do lado das políticas que serão aprovadas, por exemplo contratos de construção de viadutos e de pistas para mais carros, ainda que se saiba que as cidades estão ficando paralisadas.

Ou maior facilidade para o desmatamento, como no exemplo acima. Do lado do candidato, apenas assentado, já lhe aparece a preocupação com a dívida de campanha que ficou pendurada, e a necessidade de pensar na reeleição. Quatro anos passam rápido. Entre representar interesses legítimos do povo – por exemplo, mais transporte de massa e mais saúde preventiva – e assegurar a próxima eleição, o político fica preso na armadilha. É o próprio processo de decisão sobre o uso dos recursos públicos que é de certa maneira privatizado. Nesse sentido, o resgate da dimensão pública do Estado torna-se essencial.

O Brasil não está sozinho nesse processo de deformação da política. O próprio custo das campanhas, quando essas viram uma indústria de marketing político, é cada vez mais descontrolado. Segundo o "Economist", no caso dos EUA, os gastos com a eleição de 2004 foram de 2,5 bilhões de dólares, em 2010 foram de 4,5 bilhões, e em 2012 ultrapassaram 5 bilhões. Isso está “baseado na decisão da Corte Suprema em 2010 que permite que empresas e sindicatos gastem somas ilimitadas em marketing eleitoral”. Quanto mais cara a campanha, mais o processo é dominado por grandes contribuintes, e mais a política se vê colonizada. E resultam custos muito mais elevados para todos, já que são repassados para o público através dos preços.

E a deformação é sistêmica: além de amarrar os futuros eleitos, quando uma empresa “contribui” e por tanto prepara o seu acesso privilegiado aos contratos públicos, outras empresas se vêem obrigadas a seguir o mesmo caminho, para não se verem alijadas. E o candidato que não tiver acesso aos recursos, simplesmente não será eleito. E como esse dinheiro gira em grande parte na mídia, que veicula as campanhas, não se denuncia o processo. Todos ficam amarrados. Começa a girar a grande roda do dinheiro, partindo do sistema eleitoral. Ficam deformados tanto os sistemas de captação, como de alocação final dos recursos.

O resultado básico, é que, no Brasil, os impostos indiretos (que todos pagam no mesmo montante, ao comprar um produto) predominam sobre o imposto de renda, que pode ser mais progressivo; que não existe imposto sobre as grandes fortunas; que o imposto territorial rural é simbólico; que os grandes intermediários financeiros pagam pouquíssimo imposto, enquanto o único imposto sério a que eram submetidos, a CPMF, foi abolido, em nome, naturalmente, de "proteger os pequenos” [sic]... Acrescente-se a isso a evasão fiscal e terminamos tendo um sistema onde os pobres pagam proporcionalmente mais que os ricos, invertendo-se o papel de redistribuição que o Estado deveria ter. No Brasil, o problema não é de impostos elevados, e sim da estrutura profundamente injusta da carga tributária.

Mas custos econômicos maiores ainda resultam do impacto indireto, pela deformação do processo decisório na máquina pública, apropriada por corporações. O resultado, no caso de São Paulo, por exemplo, de eleições municipais apropriadas por empreiteiras e montadoras, são duas horas e quarenta minutos que o cidadão médio perde no trânsito por dia. Só o tempo perdido, multiplicando as horas pelo PIB do cidadão paulistano e pelos 6,5 milhões que vão trabalhar diariamente, são 50 milhões de reais perdidos por dia. Se reduzirmos em uma hora o tempo perdido pelo trabalhador a cada dia, instalando por exemplo corredores de ônibus e mais linhas de metrô. serão 20 milhões economizados por dia, 6 bilhões por ano se contarmos os dias úteis. Sem falar da gasolina, do seguro do carro, das multas, das doenças respiratórias e cardíacas e assim por diante. E estamos falando de São Paulo, mas temos Porto Alegre, Rio de Janeiro e tantos outros centros. É muito dinheiro. Significa perda de produtividade sistêmica, aumento do custo-Brasil, má alocação de recursos públicos.

Uma dimensão importante desse círculo vicioso, e que resulta diretamente do processo, é o sobrefaturamento. Quanto mais se eleva o custo financeiro das campanhas, conforme vimos acima com os exemplos americano e brasileiro, mais a pressão empresarial sobre os políticos se concentra em grandes empresas. Quando são poucas, e poderosas, e com muitos laços políticos, a tendência é a distribuição organizada dos contratos, o que por sua vez reduz a concorrência pública a um simulacro, e permite elevar radicalmente o custo dos grandes contratos. Os lucros assim adquiridos permitirão financiar a campanha seguinte, além de engordarem contas em paraísos fiscais.

Se juntarmos o crescimento do custo das campanhas, os custos do sobrefaturamento das obras, e em particular o custo da deformação do uso dos recursos públicos, estamos falando no vazamento de imensos recursos para onde não deveriam ir. Esses “gatos” que sugam os recursos públicos são muito mais poderosos do que os que encontramos nos postes de iluminação das nossas cidades. Pior: o processo corrói a gestão pública e deforma a democracia ao gerar perda de confiança popular nas dinâmicas públicas em geral.

Não que não devam ser veiculados os interesses de diversos agentes econômicos na área pública. Mas para a isso existem as associações de classe e diversas formas de articulação. A FIESP, por exemplo, articula os interesses da classe industrial do Estado de São Paulo, e é poderosa. É a forma correta de exercer a sua função, de canalizar interesses privados. O voto deve representar cidadãos. Quando se deforma o processo eleitoral através de grandes somas de dinheiro, é o processo decisório sobre o uso dos recursos que é deformado.

O absurdo não é inevitável. Na França, a totalidade dos gastos pelo conjunto dos 10 candidatos à presidência em 2012 foi de 74,2 milhões de euros, dez vezes menos do que a eleição municipal no Brasil. (4) Na Polônia, é vedado o financiamento corporativo das campanhas, e a contribuição da pessoa física é limitada a cerca de 4 mil dólares. No Canadá, há um teto para quanto se pode gastar com cada nível de candidatura. A proposta de Lessig para os Estados Unidos, é de que apenas a pessoa física possa contribuir, e com um montante muito limitado, por exemplo de algumas centenas de dólares. A contribuição pública seria proporcional ao que o candidato conseguiu junto aos cidadãos. O candidato receberia apoio de recursos públicos proporcionalmente à sua capacidade de convencer cidadãos comuns. A representatividade voltaria a dominar.

As soluções existem. O dilema está no fato que a deformação financeira gera a sua própria legalidade. Já escrevia Rousseau, no seu "Contrato Social", em 1762, texto que em 2012 cumpriu 250 anos: “O mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre senhor, se não transformar a sua força em direito e a obediência em dever”. Em 1997 [FHC/PSDB], transformou-se o poder financeiro em direito político. O direito de influenciar as leis, às quais seremos todos submetidos. Em resumo, é preciso reformular o sistema, e acompanhar os países que evoluíram para regras do jogo mais inteligentes, e limitaram drasticamente o financiamento corporativo das campanhas. Trata-se aqui de tampar uma das principais frestas de onde se origina o vazamento dos nossos recursos."

[* Este artigo foi editado a partir do capítulo 4 do livro “Os Estranhos Caminhos do Nosso Dinheiro”, de autoria do professor. Você pode conferir o livro completo aqui.]

Notas:

1. Alceu Castilho, Partido da Terra
2. O financiamento está baseado na Lei 9504, de 1997 “As doações podem ser provenientes de recursos próprios (do candidato); de pessoas físicas, com limite de 10% do valor que declarou de patrimônio no ano anterior no Imposto de Renda; e de pessoas jurídicas, com limite de 2%, correspondente [à declaração] ao ano anterior”, explicou o juiz Marco Antônio Martin Vargas.
3. “Pouquíssimos candidatos conseguem se eleger com pouco ou nenhum dinheiro”, comenta Mancuso, que coordena o projeto de pesquisa Poder econômico na política: a influência de financiadores eleitorais sobre a atuação parlamentar. Ver em Bruna Romão, Agência USP
4. Le Monde Diplomatique, Manière de Voir, Où va l’Amérique, Octobre-Novembre 2012, p.11


FONTE: escrito por Ladislau Dowbor, na "Carta Maior". Transcrito no blog "Escrivinhador" (http://www.rodrigovianna.com.br/forca-da-grana/dowbor-quem-paga-a-campanha-do-candidato-privatiza-o-recurso-publico.html).

Diferenças entre Venezuela e Ucrânia


viCman/Rebelión
Por FC Leite Filho, no blog Café na Política: no Blog do Miro

Não quero plagiar a Dilma, para quem “a Venezuela não é a Ucrânia”, mas tentar estabelecer as diferenças dos dois processos, ambos empurrados para a guerra civil, em função do jogo de interesses das potências ocidentais e suas gigantescas transnacionais petrolíferas e midiáticas.

Comecemos pela Venezuela. Rica em petróleo, esta nação, situada ao noroeste de nosso Brasil, é sacudida por intermitentes tumultos, desde 1999. Nesse ano, ela abandonou sua condição de quase protetorado dos Estados Unidos. Por isso, derrotou o analfabetismo, a miséria absoluta em que viviam mais de 50% da população, o desemprego e a subnutrição.

Hoje, o país é o segundo da América Latina em número de universitários por habitante, vencendo mesmo a culta Argentina, só perdendo para Cuba. Para chegar a esta situação confortável, o governo bolivariano gastou 150 bilhões de dólares da conta petróleo. Era o dinheiro que ia, por baixo do pano, para as transnacionais petrolíferas, os tubarões estadunidenses e europeus, com sobras gordas para a oligarquia local. Esses setores não se conformam com a perda da galinha dos ovos de ouro e, com a mídia como principal aríete arremetem, desde então toda sorte de ataque às estruturas do país.

À diferença da Ucrânia, país eslavo a 10 mil km de distância e que agora cai, pela segunda vez nas mãos da direita (a primeira foi com a revolução laranja, responsável pela introdução de um neoliberalismo selvagem que desmantelou a indústria e fez explodir o -desemprego), o país sul-americano repeliu todas as arremetidas forâneas.

Com férrea determinação exercida por uma liderança política de descortino só comparável a Fidel Castro, coisa que os ucranianos estão longe de demonstrar, na atualidade, o presidente Hugo Chávez conseguiu, nos seus quase 14 anos de poder, aprofundar os avanços sociais e de soberania, no que foi reforçado por uma política de integração com os demais presidentes progressistas da região, inclusive do Brasil e da Argentina, os dois maiores do subcontinente. Chávez morreu de câncer, logo depois de ganhar com folga sua terceira eleição, mas passou o poder a seu fiel escudeiro, Nicolás Maduro, também eleito democraticamente e que tem exibido igual domínio das rédeas do processo.

É importante que se recorde as investidas anteriores contra o regime bolivariano, muito mais graves do que a atual, para que não caiamos no simplismo de engolir as informações distorcidas de que o governo do vizinho esteja a pique. Em seguida, vamos fazer a mesma introspecção na situação ucraniana

11/04/2002 - Hugo Chávez, há três anos no governo, é deposto por uma passeata de meio milhão de pessoas no rumo do Palácio Miraflores. No meio do cortejo anti-governista, 11 manifestantes tombam mortos por tiros disparados por sicários a mando da cúpula oculta do próprio movimento, como se comprovou depois. As redes de TV e rádio privadas suspendem suas novelas e até publicidade para concentrar-se na cobertura da passeata de mais de 10 horas e no incitamento sistemático da população contra o presidente.
Supostamente indignados com o massacre, os militares dão o golpe e prendem Chávez, ele próprio um militar. Mas isto só durou 48 horas, tempo suficiente para os golpistas mostrarem seu rosto: fechando o Parlamento, depondo os governadores eleitos de 23 Estados e estabelecendo total censura de informação. Aqui, entra um elemento fundamental não disponível hoje na Ucrânia: o povo organizado, que, mesmo debaixo da maior auto-censura da mídia, ganha as ruas, desta vez com dois milhões de pessoas, arranca Chávez da prisão e o restitui ao Palácio de Miraflores.

12/2002 e 02/2003 - Um lockout, greve patronal, conhecido como o paro petrolero, tenta paralisar, durante 63 dias, rigorosamente, todas as atividades do país, a começar da PDVSA, a empresa de petróleo e responsável por 90% da renda do país. Fecham lojas, supermercados, shoping centers, escolas, estádios de futebol, cinemas. Os venezuelanos não puderam sequer comemorar o Natal e o Ano Novo. Faltou gasolina e o desabastecimento ameaçava causar a fome.

Chávez utilizou o Exército para abrir e operar os supermercados, invadiu os navios petroleiros em greve no alto mar , fazendo-os funcionar, e assumiu o controle de câmbio, para deter a evasão de divisas. Ao mesmo tempo, a população permaneceu mobilizada nas ruas e em casa, para respaldar as medidas governamentais. 80 generais da ativa e da reserva sublevaram-se, tomando a Praça Altamira, a mesma em Chacal, que hoje serve de cenário para os atos violentos das atuais manifestações, atribuídas a estudantes. No início de fevereiro de 2003, Chávez, já no domínio da situação, demite mais de 20 mil engenheiros e dirigentes da PDVSA, por alta traição. Também, reforma mais de 300 altos ofiiciais, e segue com sua revolução bolivariana. Mas o país tinha sofrido um encolhimento no PIB de cerca de 60%.

15/08/2004 - Data do referendo revogatório, exigido pela oposição para cassar o mandato de Chávez, em meio a uma campanha de desmoralização, conduzida pelos meios de comunicação de praticamente todo o planeta, dominando mais de 90 da audiência. Hugo Chávez ganha o referendo por 58% e aproveita a oportunidade para aprofundar suas reformas sociais e econômicas. Os extremistas da oposição tentam mergulhar o país em nova crise, mas vêem-se desmoralizados em suas alegações de fraude eleitoral: a lisura do pleito havia sido atestada por observadores internacionais, inclusive o Center Jimmy Carter, do ex-presidente dos Estados Unidos.

27/05/2007 - Por não ter renovado a licença da RCTV (Rede Caracas de Televisión), a maior rede de TV do país, em funcionamento desde 1953, Chávez sofre virulenta campanha internacional, seguida de atos vandálicos nos principais centros do país. O presidente, que acusou a TV de insistir no golpismo contra as instituições, manteve sua decisão de ocupar militarmente o canal e fazer dele uma nova rede do governo, a TVS, que se juntou à Telesur e à VTV. Mas ele ainda ainda teve de aguentar alguns dias de tumulto e atentados a bens públicos, para dominar anarquia que se instalou nos bairros ricos de Caracas e outras cidades, tendo, para isso, de utilizar um dispositivo de 120 mil soldados.

25/08/2012 - O presidente Hugo Chávez já estava gravemente enfermo, quando uma explosão criminosa na refinaria Amuay, a maior do mundo, causa a morte de 48 pessoas e ferimentos em uma centena. Uma investigação concluiu que o vazamento responsável pelo incêndio foi propositado, como frisou o ministro das Minas e Energia e presidente da PDVSA, Rafael Ramírez.

14/04/2013 - Nicolás Maduro se elege presidente, sucedendo a Hugo Chávez, falecido em cinco de março, com apenas 1,5%, ou 300 mil votos, de vantagem sobre Henrique Capriles Radonski, candidato único das oposições. Capriles não aceita o resultado, faz novas acusações de fraude e convoca seus aliados a manifestar-se nas ruas. Atos vandálicos contra escolas e postos de saúde, onde atuam médicos e professores cubanos, redundam na morte de 11 pessoas e cerca de 80 feridos, em 20 dias de distúrbios que assaltaram várias capitais venezuelanas. Maduro manda recontar os votos e assume oficialmente no dia 19 do mesmo mês, iniciando um mandato de seis anos.

11/2013 – Uma explosão de preços, com remarcações, que chegaram a atingir, em alguns casos, até 12 mil por cento, aliada à escassez de produtos de primeira necessidade, levou o presidente Nicolás Maduro a decretar uma série de medidas. Elas obrigaram os comerciantes, desta vez pressionados pelo Eército e o povo na rua, a restabelecer os preços antigos e avender os produtos que haviam escondido em seus depósitos.

“Esta guerra econômica foi decidida na Casa Branca. Faz parte dos fatores de poder nos Estados Unidos, acreditando que tinha chegado o momento de destruir a revolução bolivariana”, disse o presidente. A manobra, entretanto, não foi capaz de evitar nova vitória do governo na eleição municipal de dezembro, quando os chavistas ganharam por 11,5%, dez pontos a mais que a estreita margem da eleição presidencial, em que concorreram Maduro e Henrique Capriles, este candidato único da oposição.

03/12/2013 – A cinco dias da eleição municipal, quase toda a Venezuela, incluindo a capital, Caracas, ficou sem luz devido a um colapso no fornecimento de energia elétrica. O apagão ocorreu durante um discurso televisivo do presidente Nicolás Maduro e uma partida de basquete. Maduro entendeu tratar-se de uma ação subversiva planejada de fora, e ordenou colocar as forças armadas e de segurança em estado de alerta máximo.

23/01/2014 – Renunciando à via eleitoral e institucional, a oposição se bifurca, tendo a vertente mais extremista , liderada por Leopoldo López, ex-agente da CIA, novamente assaltado as ruas, incendiando escolas, postos de saúde, estações do metrô e atentado contra as redes elétricas. Os distúrbios já causaram 15 mortos e tendem a continuar, mas o governo bolivariano, parece novamente no domínio do processo, inclusive porque os atos são de puro terrorismo e são rechaçados por 85% da população. Esta sofre com o trancamento de ruas, depredações, sujeira e detritos infestando as principais vias do país.

Agora analisemos a Ucrânia. Um presidente tíbio e enredado em profundas contradições foi incapaz de domar uma turba violenta de leões de chácara, lutadores de boxe e grupos assumidamente nazistas que havia três meses ocupava, incendiava e assassinava soldados e adversários, na praça do Parlamento, onde também se situam os principais prédios públicos.

Viktor Ianukovitch viu-se finalmente deposto por um golpe parlamentar e fugiu da capital, deixando o poder com os insurretos, financiados e treinados pela Europa e os Estados Unidos, interessados nesta área altamente estratégica e tradicionalmente aliada da Rússia.

Tomaram o poder? Longe disso. No máximo, podem ter precipitado a partição daquele imenso país, o maior em território e celeiro da Europa. Talvez nem isso consiga, porque, como ocorreu com a revolução laranja, de 2004, quando assumiram o poder formal em Kiev, tiveram de sair correndo três anos depois, porque os ucranianos não aceitaram a dilapidação de seu patrimônio e a receita do FMI.

Os principais líderes laranjas, o corrupto Viktor Yushchenko e a bilionária Yulia Timoshenko, até há pouco amargavam na prisão, condenados por desvio de verbas, isso depois de terem sido escorraçados nas urnas pelo mesmo tipo de eleitorado iludido que hoje aclama os “heróis da Praça Maidan”, outro nome dado à Praça da Independência..

Menos de uma semana depois da queda de Yanukovicht lá já estavam os técnicos do FMI para aplicar uma política fiscal, com o mesmo receituário que nos aplicavam por aqui, com arrocho e congelamento salarial, cortes nos programas sociais, recessão econômica e privatização do Estado. O país tem de pagar só este ano 35 bilhões de dólares e a Europa e Estados Unidos já avisaram que o dinheiro tem de ficar a cargo dos ucranianos.

A Rússia, que se habilitara a pagar a conta em contrapartidas bem mais suaves, certamente vai retirar a proposta, além de suspender as parcelas mais gordas do empréstimo de 15 bilhões prometidos ao antigo governo. Isolada na Praça Maidan, a turba que controla a Praça da Independência, sempre falando em nome da sociedade civil e indicando os nomes do novo governo, terá também pela sua frente a ameaça concreta de separação das regiões leste e sul, fronteiriças ao antigo território soviético, e onde estão concentradas as indústrias. Os nacionalistas já saíram às ruas para pedir a autonomia da Crimeia, outro território rico à beira do Mar Negro, onde uma base naval, reforçada pelo governo do presidente Vladimir Putin, deverá garantir as aspirações dos 60% da população de origem russa daquele território.

A Ucrânia é um país geográfica, étnica, econômica, cultural e militarmente dividido. Quase um quarto da população, vivendo nas regiões sul e leste do país, é de origem russa e fala a língua de seus antepassados, de quem se consideram aliados incondicionais, inclusive por uma questão de sobrevivência.

Finalmente, há a questão estratégica. O governo Putin já avisou que não vai aceitar a aberta ingerência da Europa e dos Estados Unidos, na sua fronteira, sobretudo agora, que já recuperou boa parte de seu poderio militar, destroçado depois da aventura da Perestroika e do consequente colapso do então Bloco Soviético.

Como se sabe, o trunfo russo não reside apenas na força militar e atômica que, segundo o politólogo Moniz Bandeira, autor do livro A Segunda Guerra Fria, recentemente lançado pela Editora Civilização Brasileira, permaneceu quase intacto depois da dissolução do bloco soviético. Ele está também em mais de 50% da energia (petróleo e gás natural) com que a Rússia abastece a Europa, através o gasoduto, que inclusive passa pela Ucrânia, país altamente dependente neste setor e que agora terá que se virar para pagar o preço real pelo seu uso e não mais o preço camarada de que desfrutava até a “revolução” de Maidan.

Como o fez com a Geórgia, que depois de tomada pelo Ocidente, em 2003, Putin dividiu em três, propiciando a independência da Ossétia e da Abecásia, estas ficando sob influência russa. O presidente da antiga segunda potência também anunciou seu propósito de instalar bases militares na Venezuela, Cuba e Nicarágua, da mesma maneira que os Estados Unidos fizeram com seus vizinho na região do Cáucaso.

Está reinstalada a guerra fria, dirão alguns, mas pelo menos estes países, sob ameaça permanente de invasão pelo Exército norte-americano, terão uma proteção contra aventuras intervencionistas, como Cuba teve no passado com a velha União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Ou alguém tem dúvida de que a URSS teria impedido a invasão do Iraque, Afeganistão e a guerra civil na Síria?

Mentiras e verdades sobre a situação na Venezuela

Por Igor Fuser - Brasil de Fato

Andres AZP/CC
Mídia venezuelana e internacional difundem uma versão distorcida dos fatos; a aposta da direita é tornar o país ingovernável
 25/02/2014
Por Igor Fuser
Nos últimos dias a Venezuela voltou às manchetes dos jornais do mundo devido a uma série de manifestações de rua. Abaixo, apresento uma série de mentiras alardeadas pela chamada “grande mídia” e as suas respectivas verdades.
Mentira: Os opositores saíram às ruas porque estão descontentes com os rumos do país e querem melhorar a situação.
Verdade: O que está em curso na Venezuela é o chamado “golpe em câmera lenta”, que consiste em debilitar gradualmente o governo até gerar as condições para o assalto direto ao poder. O atual líder oposicionista, Leopoldo López, não esconde esse objetivo, ao pregar aos seus partidários que permaneçam nas ruas até o que ele chama de “La Salida”, ou seja, a derrubada do governo. O roteiro golpista, elaborado com a participação de agentes dos Estados Unidos, combina as manifestações pacíficas com atos violentos, como a destruição de patrimônio público, bloqueio de ruas e atentados à vida de militantes chavistas. A mídia venezuelana e internacional tem um papel de destaque nesse plano, ao difundir uma versão distorcida dos fatos. A aposta da direita é tornar o país ingovernável. Trata-se de criar uma situação de caos até o ponto em que se possa dizer que o país está “à beira da guerra civil” e pedir uma intervenção militar de estrangeiros. Outro tópico desse plano é a tentativa de atrair uma parcela das Forças Armadas para a via golpista. Mas isso, até agora, tem se mostrado difícil.
Mentira: A Venezuela é um regime autoritário, que impõe sua vontade sobre os cidadãos e reprime as manifestações opositoras.
Verdade: Existe ampla liberdade política no país, que é regido por uma Constituição democrática, elaborada por uma assembleia livremente eleita e aprovada em plebiscito. Nos 15 anos desde a chegada de Hugo Chávez à presidência, já se realizaram 19 consultas à população – entre eleições, referendos e plebiscitos – e o chavismo saiu vitorioso em 18 delas. Foram eleições limpas e transparentes, aprovadas por observadores estrangeiros das mais diferentes tendências políticas, inclusive de direita. O ex-presidente estadunidense Jimmy Carter, que monitorou uma dessas eleições, declarou que o sistema de votação venezuelano é “o melhor do mundo”. Esse mesmo sistema eleitoral viabilizou a conquista de inúmeros governos estaduais e prefeituras pela oposição. Há no país plena liberdade de expressão, sem qualquer tipo de censura.
Mentira: Quem está protestando contra o governo é porque “não aguenta mais” os problemas do país.
Verdade: A tentativa golpista, na qual se inserem as manifestações da direita, reflete o desespero da parcela mais extremista da oposição, que não se conforma com o resultado das eleições de 2013. Esse setor desistiu de esperar pelas próximas eleições presidenciais, em 2019, ou mesmo pelas próximas eleições legislativas, em 2016, ou ainda pela chance de convocar um referendo sobre o mandato do presidente Nicolás Maduro, no mesmo ano. Essas são as regras estabelecidas pela Constituição – qualquer coisa diferente disso é golpe de Estado. A direita esperava que, com a morte de Chávez, o processo de transformações sociais conhecido como Revolução Bolivariana, impulsionado pela sua liderança, entrasse em declínio. Apostava também na divisão das fileiras chavistas, abrindo caminho para seus inimigos. A vitória de Maduro – o candidato indicado por Chávez – nas eleições de abril de 2013, ainda que por margem pequena (1,7% de diferença), frustrou essa expectativa. Uma última cartada da oposição foi lançada nas eleições municipais de dezembro do ano passado. Seu líder, Henrique Capriles (duas vezes derrotado em eleições presidenciais), disse que elas significariam um “plebiscito” sobre a aprovação popular do governo federal. Mas os votos nos candidatos chavistas superaram os dos opositores em mais de 10%, e o governo ganhou em quase 75% dos municípios. Na época, a economia do país já apresentava os problemas que agora servem de pretexto para os protestos, e ainda assim a maioria dos venezuelanos manifestou sua confiança no governo de Maduro. Diante disso, um setor expressivo da oposição resolveu apelar para o caminho golpista.
Mentira: O governo está usando violência para reprimir os protestos.
Verdade: Nenhuma manifestação foi reprimida. O único confronto entre policiais e opositores ocorreu no dia 17 de fevereiro, quando, ao final de um protesto, grupos de choque da direita atacaram edifícios públicos no centro de Caracas, incendiando a sede da Procuradoria- Geral da República e ferindo dezenas de pessoas. Nestas últimas semanas, as ações violentas da oposição têm se multiplicado pelo país. A casa do governador (chavista) do Estado de Táchira foi invadida e depredada. Caminhões oficiais e postos de abastecimento têm sido destruídos. Recentemente, duas pessoas, que transitavam de motocicleta, morreram devido aos fios de arame farpado que opositores estendem a fim de bloquear as ruas.
Mentira: O governo controla a mídia.
Verdade: Cerca de 80% dos meios de comunicação pertencem a empresas privadas, quase todas de orientação opositora. Mas o governo recebe o apoio das emissoras estatais e também de centenas de rádios e TVs comunitárias, ligadas aos movimentos sociais e às organizações de esquerda. Isso garante a pluralidade política e ideológica na mídia venezuelana – algo que, infelizmente, não existe no Brasil, onde a direita controla quase totalmente os meios de comunicação.
Mentira: Os Estados Unidos acompanham a situação à distância, preocupados com os direitos humanos e os valores democráticos, para que não sejam violados.
Verdade: Desde a primeira posse de Chávez, em 1999, o governo estadunidense tem se esforçado para derrubar o governo venezuelano e devolver o poder aos políticos de direita. Está amplamente comprovado o envolvimento dos Estados Unidos no golpe de 2002, quando Chávez foi deposto por uma aliança entre empresários, setores militares e emissoras de televisão. Desde então, a oposição tem recebido dinheiro e orientação de Washington.
Mentira: Os problemas no abastecimento transformaram a vida cotidiana num inferno.
Verdade: Existe, de fato, a falta constante de certos bens de consumo, como roupas, produtos de higiene e limpeza e peças para automóveis, mas o acesso aos produtos essenciais (principalmente alimentos e medicamentos) está garantido para o conjunto da população. Isso ocorre graças à existência de uma rede de 23 mil pontos de venda estatais, espalhados por todo o país, sobretudo nos bairros pobres. Lá, os preços são pelo menos 50% menores do que os valores de mercado, devido aos subsídios oficiais. É importante ressaltar que o principal motivo da escassez não é nem a inexistência de dinheiro para realizar importações nem a incapacidade do governo na distribuição dos produtos. Grande parte das mercadorias em falta são contrabandeadas para a Colômbia por meio de uma rede clandestina à qual estão ligados empresários de oposição.
Mentira: A atual onda de protestos é protagonizada pela juventude, que está em rebelião contra o governo.
Verdade: Os jovens que participam dos protestos pertencem, na sua quase totalidade, a famílias das classes alta e média-alta, que constituem a quarta parte da população. Isso pode facilmente ser constatado pela imagem dos estudantes que aparecem na mídia. São, quase todos, brancos – grupo étnico que não ultrapassa 20% da população venezuelana, cuja marca é a mistura racial. E não é por acaso que os redutos dos jovens oposicionistas sejam as faculdades particulares e as universidades públicas de elite. Os jovens opositores são minoria. Do contrário, como se explica que o chavismo ganhe as eleições em um país onde 60% da população têm menos de 30 anos? Uma pesquisa recente, com base em 10 mil entrevistas com jovens entre 14 e 29 anos, revelou que 61% deles consideram o socialismo como a melhor forma de organização da sociedade, contra 13% que preferem o capitalismo.
Mentira: A economia venezuelana está em colapso.
Verdade: O país enfrenta problemas econômicos, alguns deles graves, como a inflação de mais de 56% nos últimos 12 meses. Mas não se trata de uma situação de falência, como ocorre na Europa. A Venezuela tem superávit comercial, ou seja, exporta mais do que importa, e possui reservas monetárias para bancar ao menos sete meses de compras no exterior. É um país sem dívidas. A principal dificuldade econômica é a falta de crédito, causada pelo boicote dos bancos internacionais.
Mentira: A insegurança pública está cada vez pior.
Verdade: A Venezuela enfrenta altos níveis de criminalidade, assim como outros países latino-americanos, inclusive o Brasil. Esse tema é uma das prioridades do governo Maduro, que chegou a mobilizar tropas do Exército no policiamento de certas áreas urbanas, com bons resultados. A melhoria da segurança pública foi justamente o tema do diálogo entre o governo e a oposição, iniciado no final do ano passado, por iniciativa do presidente. O próprio Chávez, em seu último mandato, criou a Polícia Nacional Bolivariana, a fim de compensar as deficiências do aparato de segurança tradicional, famoso pela corrupção. Outra estratégia é o diálogo com as “gangues” juvenis a fim de afastá-las do narcotráfico e atraí-las para atividades úteis, como o trabalho na comunidade e a produção cultural. A grande diferença entre a Venezuela e o Brasil, nesse ponto, é que lá o combate à criminalidade ocorre num marco de respeito aos direitos humanos. A política de segurança pública venezuelana descarta o extermínio de jovens nas regiões pobres, como ocorre no Brasil.