terça-feira, 9 de setembro de 2014

Dilma Rousseff faz a verdadeira lição de casa


José Pascoal Vaz (*) no Carta Maior

  
(*) Publicado originalmente no blog de Ladislau Dowbor

Durante muitos anos, técnicos de instituições financeiras mundiais, especialmente do FMI, desembarcavam aqui e, de forma prepotente, condicionavam a concessão de recursos à assinatura pelo Brasil de cartas de intenção pelas quais se comprometia a fazer o que chamavam de “lição de casa”. Esta implicava em aumento das taxas de juros, corte das despesas públicas, inclusive as de investimento e as sociais, o que produzia redução do crescimento, aumento do desemprego e arrocho salarial, com o que o Brasil se mantinha como o país mais desigual do mundo. Tudo para que acumulássemos recursos para garantir o pagamento da dívida externa, muitas vezes contraída por oferta “generosa” pelos próprios credores e ampliada no tempo por unilateral aumento posterior das taxas de juros.

Lula e Dilma resolveram, com o apoio da maioria da população, fazer outra lição de casa, a verdadeira, prioritária e imprescindível, qual seja a de impulsionar políticas públicas sociais, bem como as econômicas que lhes dessem sustentação, para combater a desigualdade social, a grande chaga que nos assola. De fato, ela se constitui em grave problema ético, o que destrói a solidariedade, exacerbando os conflitos sociais e, portanto, desembocando na violência. Afinal, a desigualdade social é uma grande violência em si. Ela pode não ser interpretada racionalmente pela maioria do povo, mas este com certeza a sente intensamente. A pobreza não implica automaticamente em violência, mas a desigualdade a instiga a tanto.

Tal situação social impede ainda a sinergia indispensável ao aumento da produtividade sistêmica, nos impedindo de ser competitivos. A desigualdade social está na raiz do propalado “custo Brasil”. O perfil de produção não casa com o perfil das necessidades, provocando conflitos do ponto de vista econômico e do ponto de vista social.

Estes graves problemas se acumulariam tão mais exponencialmente quanto mais se demorasse a enfrentar a desigualdade. Dado que esta, nas últimas décadas, vem atingindo duramente os países da Europa e os EUA (neste, o 1% mais rico que detinha 8% da renda nacional em 1980 hoje detém 22%), economistas famosos passaram a se dedicar ao tema em profusão, muitos deles “nobéis” de Economia, para conforto e reforço daqueles economistas dos países menos desenvolvidos que há décadas vem chamando a atenção para o assunto.

Além do mais, a democracia, tão duramente conquistada, exigiria que, mais cedo ou mais tarde, a desigualdade fosse reduzida, sob pena de nova ruptura política, desta vez quem sabe sangrenta. De fato, a sociedade brasileira vinha sendo esgarçada pela desigualdade desde seu descobrimento e permaneceu inexpugnável no Brasil Colônia, Império, República, nos períodos ditatoriais e democráticos, nos ciclos do ouro, do gado, do açúcar, da borracha, do café, da industrialização, do agronegócio e da financeirização. A desigualdade nunca se dobrava. É sabido que sociedades que se mantêm desiguais por muito tempo acabam por enraizar os privilégios, realimentando e ampliando a desigualdade, num círculo perverso.

Os governos Lula e Dilma não podiam perder mais tempo. Assim, entre 2002 e 2012, descartaram o FMI e as despesas sociais com impacto redistributivo foram aumentadas em 183% em termos reais. Entre estas, os gastos com os Benefícios aos Idosos e aos Deficientes de Baixa Renda cresceram 382% e os do Bolsa Família 606%. Considere-se ainda o aumento real do salário mínimo-SM de 78%, entre 2002 e 2013 (de R$ 380,00 para R$ 678,00, em moeda de jan/2013), o que propiciou aumentos reais dos benefícios previdenciários de valor até um SM e dos salários em geral, especialmente do setor de serviços.

Foi deste modo que a espinha dorsal da desigualdade foi quebrada. Do entorno de 2002 para o de 2012, o Índice de Gini (termômetro da desigualdade, pior quanto mais próximo de 100), caiu de 58,7 para 52,6. A divisão entre a renda média dos 10% mais ricos e a dos 10% mais pobres passou de 40 para 23. O percentual de pessoas abaixo da linha de pobreza caiu de 23,3% para 10,2%. Mas há muito o que reduzir na desigualdade, inclusive impedir retrocessos.

A arrumação da casa tem, claro, um custo a curto prazo. A carga tributária, que já subira de 25% do PIB em 1993 para 32% em 2002, atingiu 35% em 2008, tendo sido contida neste nível até hoje. Apesar deste aumento, a carga tributária não é suficiente para suprir as necessidades, dado o grau elevado a que estas chegaram em decorrência da pobreza consequente da secular desigualdade. Deste modo, as despesas sociais tendem a aumentar, pois os mais pobres ainda têm muitas necessidades básicas e se sentem estimulados a lutar por políticas que as promovam. Esse ânimo decorre do ambiente de democracia em fortalecimento e da percepção de que há um governo que tem essas políticas como prioridade.

Este quadro de escassez de recursos acaba por prejudicar o investimento público. Como os empreendedores não aceitam ou não compreendem a necessidade de se propugnar pela harmonia social, indispensável também para o aumento da produtividade sistêmica, retraem seus investimentos, contribuindo ainda mais para que o país cresça pouco. Some-se a isso a redistribuição para os mais pobres, que têm maior propensão a consumir, o que pressiona a inflação e contribui para a redução da poupança, reforçando o baixo o crescimento.

Uma saída “técnica” seria aumentar a carga tributária. Afinal, ela está na parte de baixo da faixa superior das maiores cargas mundiais. E quando se introduz a desigualdade social na comparação, a carga tributária brasileira é das menores. Já tivemos no Brasil faixas de tributação com alíquota de 64% sobre as rendas muito elevadas. Com a democratização, por incrível que pareça, caiu para 25%, tendo sido aumentada levemente depois para apenas 27,5%. Observe-se que os EUA já tiveram alíquota de 92% para as altíssimas rendas, depois rebaixada, mas ainda assim está em 56% do PIB.

Uma alteração tributária de porte exigiria, mais do que reforma, uma grande transformação das regras tributárias e fiscais, reduzindo substancialmente os impostos indiretos sobre os bens e serviços mais simples e essenciais e aumentando as alíquotas sobre os luxuosos e sofisticados, bem como sobre o imposto de renda e sobre os grandes patrimônios, fazendo a política tributária e fiscal passar da condição de altamente regressiva para progressiva. Mas há uma enorme dificuldade política para isso, decorrente da dificuldade da sociedade (mesmo por parte dos que seriam beneficiados por ela) em compreender esta argumentação e da reação dos poderosos que teriam seus impostos aumentados. As denúncias recorrentes de corrupção reforçam as dificuldades de tamanha mudança.

Outra saída “técnica” para aumentar a poupança pública seria reduzir os juros pagos pelo setor público. Temos pago somas astronômicas nos últimos anos, entre 5% e 8% do PIB, uma média no entorno de R$ 250 bilhões por ano, decorrente de taxas elevadas do juro básico, a Selic, hoje em 4,5% ao ano, entre as mais altas do mundo em termos reais. Este nível é um incentivo para que os bancos cobrem taxas altíssimas. Hoje, em termos reais, a média geral de todos os tipos de empréstimos está em 36% ao ano, chegando a 200% ao ano no cheque especial e no cartão de crédito. Até nos empréstimos consignados, de risco praticamente zero para os bancos, as taxas ultrapassam a 20% ao ano em termos reais. Também aqui a dificuldade política é enorme. Quando Dilma se dispôs a reduzir as taxas de juros, mandando os bancos públicos reduzirem suas taxas para forçar a queda das dos privados, não se viu clamor favorável entre os empresários produtivos, ficando o setor financeiro a cavaleiro para inculcar na sociedade o temor de que juros baixos trariam de volta a inflação.

Mas a “lição de casa” a fazer continua sendo a atual. Estamos com reservas externas elevadas, desemprego baixo, inflação sob contrôle (permanece há anos entre 4,5% e 6,5%, dentro dos parâmetros do sistema de metas), PAC 1 e 2 em andamento. A educação está em processo claro de democratização, melhora e priorização (ver evolução positiva do IDEB e dos indicadores do PISA, o PROUNI, o FIES, o PRONATEC, o Ciência sem Fronteiras, a vinculação de 10% do PIB etc). Os problemas da saúde vem sendo enfrentados, com a reorganização do SUS, o Mais Médicos (que inclui R$ 15 bi para “mais estrutura”) e controle rigoroso sobre os planos de saúde privados. A segurança tende a melhorar com a queda da desigualdade social. O setor privado tem caixa para investir: assim que a especulação com a eleição (como se fez com Lula) terminar, voltaremos a crescer.

Não podemos correr o risco de retorno aos programas neoliberais, tipo FMI, a que estaremos sujeitos caso Dilma não seja reeleita. Não podemos mudar o rumo, pois há muito o que trabalhar nessa estrada que já se começou a desbravar. Está sendo construído um Brasil para todos.

(*) José Pascoal Vaz é economista, dr. em história econômica, prof. na Unisantos e pesquisador no Nese/Unisanta. ( pascoalvaz@cmg.com.br)

Notas:

1) Quase todos os dados deste artigo são do livro de Marcos Mendes “Por que o Brasil cresce pouco?”, Elsevier, 2014, que recomendo.

2) Resumo deste artigo foi publicado em A Tribuna (03/09/14) sob o título “Fazendo a Verdadeira Lição de Casa"




Nenhum comentário:

Postar um comentário