José
Carlos de Assis, para o GGN -
Gustavo Franco foi demitido do Banco
Central em 1999 por incompetência. Depois de manter artificialmente
elevada, desde o Plano Real, a taxa de câmbio – para combater a inflação
à custa do sistema produtivo interno -, mergulhou o País numa crise de
balanço de pagamentos de proporções gigantescas, e que nos levaria de
cócoras ao FMI. Pouco antes de ser demitido teve a ousadia de dobrar a
taxa básica de juros para, supostamente, evitar as consequências maiores
da crise que ele própria havia produzido- o que pareceu um excesso
mesmo para Fernando Henrique, que o via como gênio raça.
Agora
recebo de um amigo um artigo de Gustavo Franco com uma defesa apaixonada
da independência do Banco Central. Não pode ser em interesse próprio,
pois ele já não é mais presidente do BC. Mas passa-me pela cabeça em que
terrível situação FHC e seu ministro da Fazenda, Pedro Malan, estariam
metidos se, em 1999, estivesse em pleno vigor uma lei de independência
do BC. Não só isso. O sucessor de Franco, Francisco Lopes, fez em
questão de semanas uma trapalhada ainda maior, e teve também que ser
demitido, desta vez com desonra.
Portanto, os tucanos têm a mais
aguda experiência brasileira em matéria de violar a independência da
diretoria do BC. Não entendo como a querem estipular por lei. Já Marina é
outra coisa. Ela tem a chave suprema da governança pública que é a de
"governar com os melhores". Com algum "melhor" na presidência do BC,
nunca será necessário demiti-lo em nome do interesse público. Franco não
seria o melhor. Nem Lopes. Não foram indicados por Marina. Porém, desde
que seja Marina a indicar o presidente do BC, o País poderá dormir
tranquilo com sua estabilidade monetária.
Mas entremos no
conteúdo do artigo de Gustavo Franco. Meu amigo, procurando me convencer
dos argumentos independentistas dele, destacou o seguinte trecho:
"Temos aqui um problema clássico de governança. O BC não tem
minoritários, mas possui cerca de 180 milhões de "preferencialistas",
que são os "acionistas" sem direito a voto que carregam papéis ao
portador, emitidos em pequenas denominações pelo BC, de aceitação
obrigatória fixada em lei, cujo valor é fixado livremente no comércio.
Quem zela pelo preferencialista?"
Quem zela pelo preferencialista
- o qual, aliás, deve ser apropriadamente chamado de cidadão -, só pode
ser o Estado, que tem, em última instância, a soberania da moeda. O
dinheiro é um título dívida pública monetária; não é dívida do BC, que
não tem patrimônio para isso. É uma obrigação genérica do Estado. Uma
emissão monetária confronta ativos da sociedade, bens e serviços, e só
se efetiva enquanto valor se alguém quiser tomar o dinheiro emprestado
do BC/Governo ou se quiser vender para ele bens e serviços. Se ninguém
quiser tomar o dinheiro emprestado do BC, o dinheiro fica lá no caixa do
banco, nulificado, como se não tivesse havido emissão.
A
obrigação do BC é prover dinheiro num nível suficiente para garantir a
circulação de bens e serviços na sociedade, com uma margem de
crescimento anual. Entretanto, como o sistema capitalista evolui em
ciclos de boom e depressão, o BC deve prover mais dinheiro na recessão e
depressão, e menos dinheiro nos picos da atividade econômica. Isso
significa cobrir o déficit do tesouro nas fases recessivas, comprando
títulos públicos emitidos pelo tesouro, e enxugar moeda no boom,
vendendo títulos. Daí a necessidade de um BC articulado com os tesouros
nacionais. Um BC politicamente dependente da soberania do Estado.
Não compreendo como os profetas brasileiros do banco central
independente não se miram nas experiências do Banco Central Europeu, o
mais independente do mundo, e do FED, o banco central americano,
certamente dependente do setor político. Isso não tanto pela questão do
mandato por tempo definido mas pelas atribuições: o FED,
estatutariamente, tem que responder não só pela estabilidade da moeda
mas pela promoção do máximo emprego, e já houve caso em que o presidente
foi demitido antes do fim do mandato. Já o BCE tem a mais larga
experiência de incompetência no gerenciamento da moeda produzindo na
Europa a maior recessão da história recente com mandatos permanentes.
De um ponto de vista filosófico, a moeda tem valor, e é universalmente
aceita num determinado marco nacional porque é com ela que se pagam
tributos, conforme Abba Lerner. Para pagarmos tributos, que é uma
obrigação universal dos cidadãos, temos que adquirir moeda, seja pelo
trabalho direto, seja pelo trabalho indireto (vendendo bens e serviços).
Esse valor se ancora em três funções básicas, a saber, reserva de
valor, padrão de preços e instrumento de transação. A inflação afeta
basicamente a função de reserva de valor. O Governo deve velar para a
preservação do valor da moeda mas não pode garantir isso de forma
absoluta pois é o setor privado, na forma do jogo de oferta e de procura
de bens e serviços, que determina em última instância a evolução dos
preços.
Não obstante, não há um título privado substitutivo da
moeda a não ser por algumas de suas formas marginais na economia
paralela. E a função de preservação do valor foi assumida pelos títulos
da dívida pública dos governos, que pagam juros. Esta tem também uma
função crucial de dar lastro à acumulação do capital no sistema
capitalista. Isso gera uma situação tão complexa que, caso a economia
não cresça, e os juros da dívida pública, como entre nós, seja de 11%, o
patrimônio financeiro dos investidores em títulos públicos terá
crescido de uma ano para outro 11% sem qualquer correspondência com a
economia real. Isso é justo? E em que medida as gerações futuras terão
que arcar com o pagamento de uma renda que não foi obtida pelo trabalho,
mas pela especulação?
Um BC politicamente orientado deve
promover uma expansão monetária que pelo menos acompanhe a evolução das
taxas básicas de juros. Isso significa que o fluxo de produção de bens e
serviços deve ser acompanhado pelo fluxo de juros da dívida pública. Se
a economia estancar, os juros devem ser zero ou negativos (o BCE está
adotado essa política, mas tardiamente; produziu o que se chama
"armadilha de liquidez", pela qual há dinheiro disponível nos bancos mas
ninguém toma emprestado porque não há perspectiva de demanda dos bens e
serviços produzidos pelo investimento novo. Contra isso, o único
remédio é uma política fiscal expansiva, o que acaba de ser admitido por
um membro do BCE, contra a política fiscal alemã.)
Resumindo a
história: ao contrário do que Gustavo Franco pensa, o problema não é de
mandato definido para o presidente e a diretoria do BC. Se ele estivesse
exercendo mandato definido em 1999 ele seria demitido de qualquer forma
pois certos desastres econômicos são insuportáveis: como dizia o
liberal Mário Henrique Simonsen, "inflação fere, mas desequilíbrio de
balanço de pagamentos mata". O problema é de função do BC. O banco não
está gerindo título privado, como uma empresa, mas uma função vinculada à
soberania nacional e ao bem estar social da população como um todo. Não
é uma agência qualquer. Na essência, é um braço institucional do
Tesouro Nacional.
Creio que Franco tem dificuldades de ver isso
porque não é capaz de deduzir relações financeiras de fatos financeiros.
No prefácio que fez da magnífica autobiografia de Hjalmar Schart, que
se tornaria nos anos 30 o banqueiro de Hitler, Franco se referiu a ele
como "um grande liberal". Esqueceu-se de comentar o que aparece na
própria biografia, a saber, o desempenho prático de um genial financista
heterodoxo, inspirado pelo New Deal americano, que foi capaz de
construir uma engenharia financeira pela qual o Tesouro alemão quebrado
foi financiado por empresas privadas líquidas mediante um título
nominalmente emitido por quatro grandes empresas (títulos Mefo) mas
bancado em último instância pelo mesmo Tesouro quebrado. Belo liberal!
J. Carlos de Assis é economista, doutor pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional da UEPB.
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