domingo, 20 de dezembro de 2015

O ajuste suicida de 2015: uma reflexão

Fabrício Augusto de Oliveira* no site Carta Maior

A economia brasileira deve fechar o ano de 2015 registrando um recuo do PIB na casa de 3,5% a 4% do PIB, o maior desde 1990, quando Fernando Collor de Mello assumiu o governo com a promessa de arrumar a casa e liquidar a inflação com a realização de um ajuste fiscal que pretendia ficar inscrito na história como o maior de todos os tempos.  Não conseguiu nem uma coisa, nem outra, e recolocou a economia na trajetória da hiperinflação acompanhada do estigma do baixo crescimento, o qual, até os dias atuais, não foi revertido.

Após as trapalhadas da política econômica no período de 2011-2014, que enfraqueceram as bases do tripé macroeconômico ortodoxo – câmbio flutuante/metas inflacionárias/superávit primário -, sem se ter conseguido sucesso com a equivocada proposta de conciliá-lo com uma “Nova Matriz Econômica” como estratégia de desenvolvimento, o governo, diante da deterioração das variáveis centrais da economia – inflação, déficit externo, contas públicas etc. - causada por essa política, terminou rendendo-se novamente à ortodoxia para implementar, como na época de Collor, um ajuste muito semelhante, visando resgatar a confiança do mercado.

Nele, a recessão é vista como pré-condição para recompor as bases do tripé, sanear financeiramente o Estado, libertando-o do fardo dos gastos com as políticas sociais, com os investimentos públicos e com as farras das desonerações tributárias destinadas a fomentar o consumo e o investimento privado, para, só então, o país ter condições de abrir as portas para o sol do crescimento.

Não estranha, assim, pela natureza do ajuste que vem sendo realizado pela política econômica, e que deve continuar nos próximos anos, que o crescimento econômico esteja sendo jogado ladeira abaixo e que este só poderá voltar à cena, nessa perspectiva, uma vez aquele concluído. Mas isso não ocorrerá em pouco tempo e o país pode se preparar para tempos também tão difíceis como o deste ano.

A principal razão dessa dificuldade reside no fato de que a natureza do ajuste exigido pela ortodoxia não se faz sem subtrair forças dos próprios fatores que são responsáveis por impulsionar o crescimento, embora existam outras alternativas que poderiam ter sido buscadas, mas que o governo, talvez por que enfraquecido também politicamente, simplesmente descartou. Isso, por algumas razões.

Em primeiro lugar, por ser um de seus objetivos a reversão dos ganhos salariais que foram obtidos acima do aumento da produtividade, não como resultado apenas do crescimento econômico, segundo os argumentos que se utiliza para justificá-lo, mas principalmente devido às políticas de reajustes generosos aprovadas pelo governo, as quais, complementadas por políticas redistributivas, aumentaram excessivamente o consumo, sem a correspondente ampliação da oferta. Tal situação acabou desencadeando pressões inflacionárias e aumentando as importações, com impactos negativos também sobre o déficit externo, vigas mestras do modelo ortodoxo, tornando necessária, assim, sua reversão.

A correção deste desequilíbrio, que demanda a realização de um ajuste cíclico, exige, assim, a desmontagem deste quadro, retirando dos trabalhadores estes ganhos indevidos, para o que a recessão desempenha papel essencial, à medida que, ao desaquecer o mercado de trabalho, aumenta o desemprego e reduz os salários, ao mesmo tempo em que inibe novos reajustes acima do aumento da produtividade. Na mesma direção, a desvalorização cambial, apesar dos impactos inflacionários que ocasiona, contribui para melhorar a relação câmbio/salário, tornando a produção nacional mais competitiva, mesmo que reduzindo a força da demanda interna.

Em segundo, porque seu objetivo é também o de recuperar o Estado como fiador da estabilização macroeconômica e, com isso, resgatar o seu papel como gerador de superávits primários, o que teria deixado de acontecer em 2014 e também em 2015, visando garantir o pagamento dos credores de sua dívida e acalmar o mercado diante da desconfiança que este passou a ter sobre a capacidade do governo de honrar seus compromissos financeiros.

Isso significa retirar tanto o quanto possível, até mesmo por meio de reformas constitucionais, compromissos do Estado com gastos de natureza não financeira, caso dos que este realiza com as políticas sociais e os investimentos, de forma a tornar possível acomodar, no orçamento, os ganhos da riqueza financeira.

Ora, tal providência, que tem sido proposta na forma de abandono – ou pelo menos de redução – do sistema de vinculações constitucionais da receita para as áreas sociais, da reforma da previdência para aumentar o tempo da aposentadoria, ou mesmo de priorização do investimento privado em infraestrutura, enfraquece também a ação do Estado na promoção do crescimento, por meio do gasto público, em consumo, investimentos ou na implementação de políticas redistributivas, que têm o condão de fortalecer a demanda agregada.

A retomada do crescimento econômico passa a depender, assim, quase que exclusivamente do investimento privado, num contexto em que as forças da demanda por consumo se encontram enfraquecidas – consumo das famílias e do governo – e, mais grave, numa situação em que o Estado estará com os caminhos bloqueados para remover os gargalos estruturais da economia – de infraestrutura econômica e social, de logística etc. -, e em que a economia internacional continua sem emitir sinais de recuperação confiável, com a ameaça da deflação na Europa, a desaceleração progressiva da China e  a ainda morna economia dos Estados Unidos.

Não é possível, neste cenário, enxergar qualquer fator de incentivo ao investimento produtivo privado capaz de inspirar-lhe confiança para aventurar-se na vida econômica, a não ser a crença da ortodoxia de que apenas o saneamento financeiro do Estado seja capaz de despertar-lhe o espírito animal keynesiano, quando se sabe que os seus determinantes não se resumem a essa condição.

Isso até pode valer especificamente para o capital financeiro que apenas quer ter a garantia de que receberá seus ganhos pelos empréstimos feitos ao Estado, o que não é o caso do capital produtivo, que precisa contar, para realizar investimentos, com políticas macroeconômicas consistentes, de impostos, câmbio e juros, com infraestrutura adequada e boa qualificação de mão de obra para não ver ampliados seus custos de produção, comprometendo sua competitividade. O que o ajuste em curso não contempla.

Ao fazer a opção por privilegiar o ajuste de cunho ortodoxo, destituído de uma agenda para o crescimento, que exigiria o encaminhamento de reformas estruturais, indicando a porta de saída para a crise, e enfraquecer a ação do Estado como promotor de um novo projeto de desenvolvimento, visando garantir a drenagem de recursos do orçamento para o seus credores e preservar de seu ônus os setores mais poderosos economicamente e a riqueza financeira, o governo praticamente sepultou as chances que, já não tão grandes no contexto atual, ainda existiam, de retomada do crescimento, e condenou a economia ao purgatório da recessão e da estagnação.

Tal como implementado, o ajuste fiscal das contas primárias realizado em 2015, preocupado apenas em produzir a recessão em busca destes resultados, terminou minando, ainda mais, até mesmo as vigas mestras do tripé macroeconômico que, em tese, se pretendia recompor, prejudicando, inclusive, as próprias contas públicas e prenunciando que novos ajustes dessa natureza, se necessários, continuarão a ser realizados. Isso, mesmo que se produza a situação conhecida como a de “paz dos cemitérios”, em que se não há inflação, não há também vida econômica e social pulsante, desde que seu principal objetivo seja alcançado, que é o da preservação da riqueza financeira.

A queda de mais de 3% do PIB neste ano, com o nível do desemprego caminhando para a casa dos 10% parece, nessa situação, apenas estar dando início a um período prolongado de grandes dificuldades que aguardam pelo país com a política econômica implementada e com a disposição do governo, pelo menos até o momento, de a ela dar continuidade nos próximos anos.

* Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, colaborador do Brasil Debate e Folha Diária, e autor, entre outros, do livro “Política Econômica, estagnação e crise mundial: Brasil, 1980-2010”.

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