Com argumentos
insofismáveis, Denise Gentil destroça os
mitos oficiais que encobrem a realidade da Previdência Social no Brasil. Em
primeiro lugar, uma gigantesca farsa contábil transforma
em déficit o superávit do sistema previdenciário, que
atingiu a cifra de R$ 1,2 bilhões em 2006, segundo a
economista.
O superávit da
Seguridade Social - que abrange a Saúde, a Assistência
Social e a Previdência - foi significativamente maior:
R$ 72,2 bilhões. No entanto, boa parte desse excedente
vem sendo desviada para cobrir outras despesas,
especialmente de ordem financeira - condena a professora
e pesquisadora do Instituto de Economia da UFRJ, pelo qual
concluiu sua tese de doutorado "A falsa crise da
Seguridade Social no Brasil: uma análise financeira do
período 1990 - 2005" (leia a
tese na íntegra).
Nesta
entrevista ao Jornal da UFRJ, ela ainda explica por
que considera insuficiente o novo cálculo para o sistema
proposto pelo governo e mostra que, subjacente ao debate
sobre a Previdência, se desenrola um combate entre
concepções distintas de desenvolvimento
econômico-social.
A entrevista é
de Coryntho Baldez, publicada por Jornal da UFRJ, 11-01-2016.
Eis a entrevista.
A idéia de crise do sistema
previdenciário faz parte do pensamento econômico
hegemônico desde as últimas décadas do século passado.
Como essa concepção se difundiu e quais as suas
origens?
A idéia de falência dos sistemas
previdenciários públicos e os ataques às instituições do welfare
state (Estado de Bem - Estar Social) tornaram-se dominantes em
meados dos anos 1970 e foram reforçadas com a crise econômicados anos 1980. O
pensamento liberal-conservador ganhou terreno no meio
político e no meio acadêmico. A questão central para as
sociedades ocidentais deixou de ser o desenvolvimento
econômico e a distribuição da renda, proporcionados pela
intervenção do Estado, para se converter no combate à inflação e na defesa da
ampla soberania dos mercados e dos interesses
individuais sobre os interesses coletivos. Um sistema de
seguridade social que fosse universal, solidário e
baseado em princípios redistributivistas conflitava com
essa nova visão de mundo.
O principal
argumento para modificar a arquitetura dos sistemas
estatais de proteção social, construídos num período de
crescimento do pós-guerra, foi o dos custos crescentes
dos sistemas previdenciários, os quais decorreriam,
principalmente, de uma dramática trajetória demográfica
de envelhecimento da população. A partir de então, um
problema que é puramente de origem sócio-econômica foi
reduzido a um mero problema demográfico, diante do qual
não há solução possível a não ser o corte de direitos,
redução do valor dos benefícios e elevação de impostos.
Essas idéias foram amplamente difundidas para a
periferia do capitalismo e reformas
privatizantes foram implantadas em vários países da
América Latina.
No Brasil, a concepção de crise financeira da
Previdência vem sendo propagada insistentemente há
mais de 15 anos. Os dados que você levantou em suas
pesquisas contradizem as estatísticas do governo.
Primeiramente, explique o artifício contábil que
distorce os cálculos oficiais.
Tenho defendido a idéia de que o cálculo
do déficit previdenciário não está correto, porque não
se baseia nos preceitos da Constituição Federal de 1988,
que estabelece o arcabouço jurídico do sistema de Seguridade Social. O cálculo do
resultado previdenciário leva em consideração apenas a
receita de contribuição ao Instituto Nacional de
Seguridade Social (INSS) que incide sobre
a folha de pagamento, diminuindo dessa receita o valor
dos benefícios pagos aos trabalhadores. O resultado dá
em déficit. Essa, no entanto, é uma equação
simplificadora da questão. Há outras fontes de receita
da Previdência que não são computadas nesse cálculo,
como a Cofins (Contribuição
para o Financiamento da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição
Social sobre o Lucro Líquido), a CPMF (Contribuição
Provisória sobre Movimentação Financeira) e a receita de
concursos de prognósticos. Isso está expressamente
garantido no artigo 195 da Constituição e acintosamente
não é levado em consideração.
A que números você chegou em sua pesquisa?
Fiz um levantamento da situação
financeira do período 1990-2006. De acordo com o fluxo
de caixa do INSS, há superávit operacional ao longo
de vários anos. Em 2006, para citar o ano mais recente,
esse superávit foi de R$ 1,2 bilhões.
O superávit da Seguridade
Social, que abrange o conjunto da
Saúde, da Assistência Social e da Previdência, é muito
maior. Em 2006, o excedente de recursos do orçamento da
Seguridade alcançou a cifra de R$ 72,2 bilhões.
Uma parte
desses recursos, cerca de R$ 38 bilhões, foi
desvinculada da Seguridade para além do
limite de 20% permitido pela DRU (Desvinculação
das Receitas da União).
Há um grande
excedente de recursos no orçamento da Seguridade Social que é desviado
para outros gastos. Esse tema é polêmico e tem sido
muito debatido ultimamente. Há uma vertente, a mais
veiculada na mídia, de interpretação desses dados que
ignora a existência de um orçamento da Seguridade Social
e trata o orçamento público como uma equação que envolve
apenas receita, despesa e superávit primário. Não haveria, assim,
a menor diferença se os recursos do superávit vêm do
orçamento da Seguridade Social ou de outra fonte
qualquer do orçamento.
Interessa
apenas o resultado fiscal, isto é, o quanto foi
economizado para pagar despesas financeiras com juros e
amortização da dívida pública.
Por isso o
debate torna-se acirrado. De um lado, estão os que
advogam a redução dos gastos financeiros, via redução
mais acelerada da taxa de juros, para liberar recursos
para a realização do investimento público necessário ao
crescimento. Do outro, estão os defensores do corte
lento e milimétrico da taxa de juros e de reformas para
reduzir gastos com benefícios previdenciários e
assistenciais. Na verdade, o que está em debate são as
diferentes visões de sociedade, de desenvolvimento
econômico e de valores sociais.
Há uma confusão entre as noções de Previdência e
de Seguridade Social que dificulta a compreensão dessa
questão. Isso é proposital?
Há uma grande dose de desconhecimento no
debate, mas há também os que propositadamente buscam a
interpretação mais conveniente. A Previdência é parte
integrante do sistema mais amplo de Seguridade Social.
É parte
fundamental do sistema de proteção social erguido pela
Constituição de 1988, um dos maiores avanços na
conquista da cidadania, ao dar à população acesso a
serviços públicos essenciais. Esse conjunto de políticas sociais se transformou
no mais importante esforço de construção de uma
sociedade menos desigual, associado à política de
elevação do salário mínimo. A visão dominante do debate
dos dias de hoje, entretanto, freqüentemente isola a
Previdência do conjunto das políticas sociais,
reduzindo-a a um problema fiscal localizado cujo suposto
déficit desestabiliza o orçamento geral. Conforme
argumentei antes, esse déficit não existe, contabilmente
é uma farsa ou, no mínimo, um erro de interpretação dos
dispositivos constitucionais.
Entretanto,
ainda que tal déficit existisse, a sociedade, através do
Estado, decidiu amparar as pessoas na velhice, nodesemprego, na doença, na invalidez por
acidente de trabalho, na maternidade, enfim, cabe ao
Estado proteger aqueles que estão inviabilizados,
definitiva ou temporariamente, para o trabalho e que
perdem a possibilidade de obter renda. São direitos
conferidos aos cidadãos de uma sociedade mais evoluída,
que entendeu que o mercado excluirá a todos nessas
circunstâncias.
E são recursos que retornam para a economia?
É da mais alta
relevância entender que a Previdência é muito mais que
uma transferência de renda a necessitados. Ela é um
gasto autônomo, quer dizer, é uma transferência que se
converte integralmente em consumo de alimentos, de
serviços, de produtos essenciais e que, portanto,
retorna das mãos dos beneficiários para o mercado,
dinamizando a produção, estimulando o emprego e
multiplicando a renda. Os benefícios previdenciários têm
um papel importantíssimo para alavancar a economia. O
baixo crescimento econômico de menos de 3% do PIB (Produto
Interno Bruto), do ano de 2006, seria ainda menor se não
fossem as exportações e os gastos do governo,
principalmente com Previdência, que isoladamente
representa quase 8% do PIB.
De acordo com a Constituição, quais são
exatamente as fontes que devem financiar a Seguridade
Social?
A seguridade é financiada por
contribuições ao INSS de
trabalhadores empregados, autônomos e dos empregadores;
pela Cofins, que incide sobre o faturamento
das empresas; pela CSLL, pela CPMF (que ficou
conhecida como o imposto sobre o cheque) e pela receita
de loterias. O sistema de seguridade possui uma
diversificada fonte de financiamento. É exatamente por
isso que se tornou um sistema financeiramente
sustentável, inclusive nos momentos de baixo
crescimento, porque além da massa salarial, o lucro e o
faturamento são também fontes de arrecadação de
receitas. Com isso, o sistema se tornou menos vulnerável
ao ciclo econômico. Por outro lado, a diversificação de
receitas, com a inclusão da taxação do lucro e do
faturamento, permitiu maior progressividade na
tributação, transferindo renda de pessoas com mais alto
poder aquisitivo para as de menor.
Além dessas contribuições, o governo pode lançar
mão do orçamento da União para cobrir necessidades da
Seguridade Social?
É exatamente isso que diz a
Constituição. As contribuições sociais não são a única
fonte de custeio da Seguridade. Se for necessário, os
recursos também virão de dotações orçamentárias da
União. Ironicamente tem ocorrido o inverso. O orçamento
da Seguridade é que tem custeado o orçamento fiscal.
O governo não executa o orçamento à parte para a
Seguridade Social, como prevê a Constituição,
incorporando-a ao orçamento geral da União. Essa é uma
forma de desviar recursos da área social para pagar
outras despesas?
A Constituição determina que sejam
elaborados três orçamentos: o orçamento fiscal, o
orçamento da Seguridade Social e o orçamento de
investimentos das estatais. O que ocorre é que, na
prática da execução orçamentária, o governo apresenta
não três, mas um único orçamento chamandoo de "Orçamento Fiscal e da Seguridade Social",
no qual consolida todas as receitas e despesas,
unificando o resultado. Com isso, fica difícil perceber
a transferência de receitas do orçamento da Seguridade
Social para financiar gastos do orçamento fiscal. Esse é
o mecanismo de geração de superávit primário no orçamento
geral da União. E, por fim, para tornar o quadro ainda
mais confuso, isola-se o resultado previdenciário do
resto do orçamento geral para, com esse artifício
contábil, mostrar que é necessário transferir cada vez
mais recursos para cobrir o "rombo" da Previdência. Como
a sociedade pode entender o que realmente se passa?
Agora, o governo pretende mudar a metodologia
imprópria de cálculo que vinha usando. Essa mudança
atenderá completamente ao que prevê a Constituição,
incluindo um orçamento à parte para a Seguridade
Social?
Não atenderá o que diz a Constituição,
porque continuará a haver um isolamento da Previdência do resto daSeguridade Social. O governo não
pretende fazer um orçamento da Seguridade. Está propondo
um novo cálculo para o resultado fiscal da Previdência.
Mas, aceitar que é preciso mudar o cálculo da
Previdência já é um grande avanço. Incluir a CPMF entre
as receitas da seguridade é um reconhecimento
importante, embora muito modesto. Retirar o efeito dos
incentivos fiscais sobre as receitas também ajuda a
deixar mais transparente o que se faz com a política
previdenciária. O que me parece inadequado, entretanto,
é retirar a aposentadoria rural da despesa com
previdência porque pode, futuramente, resultar em perdas
para o trabalhador do campo, se passar a ser tratada
como assistência social, talvez como uma espécie de
bolsa. Esse é um campo onde os benefícios têm menor
valor e os direitos sociais ainda não estão
suficientemente consolidados.
Como você analisa essa mudança de postura do
Governo Federal em relação ao cálculo do déficit? Por
que isso aconteceu?
Acho que ainda não há uma posição
consolidada do governo sobre esse assunto. Há
interpretações diferentes sobre o tema do déficit da
Previdência e da necessidade de reformas. Em alguns
segmentos do governo fala-se apenas em choque de gestão,
mas em outras áreas, a reforma da previdência é tratada
como inevitável. Depois que o Fórum da Previdência for
instalado, vão começar os debates, as disputas, a
atuação dos lobbies e é impossível prever qual o grau de
controle que o governo vai conseguir sobre seus rumos.
Se os movimentos sociais não estiverem
bem organizados para pressionarem na defesa de seus
interesses pode haver mais perdas de proteção social,
como ocorreu em reformas anteriores.
A previdência pública no Brasil, com seu grau de
cobertura e garantia de renda mínima para a população,
tem papel importante como instrumento de redução dos
desequilíbrios sociais?
Prefiro não superestimar os efeitos da Previdência sobre os
desequilíbrios sociais. De certa forma, tem-se que
admitir que vários estudos mostram o papel dos gastos
previdenciários e assistenciais como mecanismos de
redução da miséria e de atenuação das desigualdades
sociais nos últimos quatro anos. Os avanços em termos de
grau de cobertura e de garantia de renda mínima para a
população são significativos. Pela PNAD (Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios), cerca de 36,4
milhões de pessoas ou 43% da população ocupada são
contribuintes do sistema previdenciário. Esse
contingente cresceu de forma considerável nos últimos
anos, embora muito ainda necessita ser feito para
ampliar a cobertura e evita que, no futuro, a pobreza na
velhice se torne um problema dos mais graves. O fato,
porém, de a população ter assegurado o piso básico de um salário mínimo para os
benefícios previdenciários é de fundamental importância
porque, muito embora o valor do salário mínimo esteja
ainda distante de proporcionar condições dignas de
sobrevivência, a política social de correção do salário
mínimo acima da inflação tem permitido redução da
pobreza e atenuado a desigualdade da renda.
Cerca de dois
milhões de idosos e deficientes físicos recebem
benefícios assistenciais e 524 mil são beneficiários do
programa de renda mensal vitalícia. Essas pessoas têm
direito a receber um salário mínimo por mês de forma
permanente.
Evidentemente
que tudo isso ainda é muito pouco para superar nossa
incapacidade histórica de combater asdesigualdades sociais. Políticas muito
mais profundas e abrangentes teriam que ser colocadas em
prática, já que a pobreza deriva de uma estrutura
produtiva heterogênea e socialmente fragmentada que
precisa ser transformada para que a distância entre
ricos e pobres efetivamente diminua. Além disso, o
crescimento econômico é condição fundamental para a redução da pobreza e, nesse
quesito, temos andado muito mal. Mas a realidade é que a
redução das desigualdades sociais recebeu um pouco mais
de prioridade nos últimos anos do que em governos
anteriores e alguma evolução pode ser captada através de
certos indicadores.
Apesar do superávit que o governo esconde, o
sistema previdenciário vem perdendo capacidade de
arrecadação. Isso se deve a fatores demográficos, como
dizem alguns, ou tem relação mais direta com a
política econômica dos últimos anos?
A questão fundamental para dar sustentabilidade para um sistema
previdenciário é o crescimento econômico, porque as
variáveis mais importantes de sua equação financeira são
emprego formal e salários. Para que não haja risco do
sistema previdenciário ter um colapso de financiamento é
preciso que o país cresça, aumente o nível de ocupação
formal e eleve a renda média no mercado de trabalho para
que haja mobilidade social. Portanto, a política
econômica é o principal elemento que tem que entrar no
debate sobre "crise" da Previdência. Não temos um
problema demográfico a enfrentar, mas de política
econômica inadequada para promover o crescimento ou a
aceleração do crescimento.
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